domingo, 17 de agosto de 2008

Verso viúvo

Então dói a página em branco. Pois o poeta inerte se faz inútil. Sente-se vestido de descaso, ignora toda a beleza, incapaz de entender o parnasiano. De volta ao escuro, seu corpo é caverna vazia. Uma procura suicida sem graça por um verso que seja. O ultimo sopro de vida vem sem lirismo e descompassado. Esses versos rudimentares não são bem seus, são do mutante que some em meio à multidão desgostosa cuja mesmice não umedece os olhos. Sabe-se lamentável pelo desapreço à rotina. Sua deriva ignora o caos externo sem encobrir o que vem de dentro. Na desordem abstrata o poeta cala. Perdoe a falta de jeito, perdoe o tom intimista, perdoe a inveja que existe pelos mundos florescentes, o poeta foi ao nordeste. E quer ser vão o bastante para acreditar, que há um deus no tempo, que reverterá seu dom numa chuva de versos reluzentes. Sol e chuva casamento de viúva. Chato, parece ser tudo. O tempo e a falta d’água causam-lhe rugas. Ainda, o poeta acredita. Não há espelhos na caverna.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Imaginou que ela viria hoje. A velha refletida no espelho conflita com a imagem de Neusa. A saudade impregnada no olhar, o nó da garganta ramificado nas rugas, o pretume do medo nas olheiras. Quem a visse sob a meia luz do quarto pensaria antes no cômodo, se a percebesse presumiria uma estátua triste. O tempo parecia ter retirado a carga de importância da velha.
Na última sexta feira, Neusa recebera a visita homeopática de seu filho. Prevendo o girar da maçaneta, ela se antecipa ao olho mágico. Ao ver Leopoldo parece desinflar o peito, numa coisa que não se sabe alívio ou desgosto. O rapaz estranha o comportamento agitado da mãe. Não queria café, nem chá, nem leite, nem coca, não queria nada, só vê-la, como sempre. E, quem sabe, trocassem algumas palavras, ou talvez como ocorrido (e para surpresa do filho) a mãe falasse sem parar, sobre a visita de uma moça. “É muito bonita meu filho, deveria vir aqui mais vezes e quem sabe a encontraria. Tem os cabelos negros como a noite, a pele de tão macia, parece perolada, uma seda, meu filho, uma seda. Da primeira vez eu estranhei, já era tarde, quase onze e meia, eu sei que você acha que não devo abrir a porta pra estranhos, mas a bela não faria mal a uma mosca. Ela não disse nada, apenas sorriu e me abraçou. Claro que me desvencilhei daqueles bracinhos, que maluquice, mulher esquisita. Pois bem, fechei a porta e ela foi embora. No dia seguinte ela veio mais cedo, depois do jornal, pensei em não abrir, mas de lá ela gritou meu nome. Ordenei que entrasse e deixasse de alarde no corredor, julguei que fosse uma sobrinha do norte que a idade me fez esquecer, mas não. Na verdade não sei, a moça começou a falar do tempo antigo, me perdi na conversa e acabei por não saber de nada. E tem sido assim, ela chega quando quer, não toca em nada meu filho, não aceita um chá, mas conversamos que é uma beleza, depois vai-se embora, não sei seu nome e agora fico sem jeito de perguntar, não quer ficar por aqui filho? Pra conhecê-la? Já imagino os dois juntos, nossa quanta prosa! E é bonita viu? É linda.”
Leopoldo sentado no sofá ouvia a mãe discursar sobre a mulher. E tentava esconder o choro com as mãos, embora Dona Neusa mal olhasse para o rosto do filho, perdida em seu palco esquecera-se da platéia. Ele viera disposto a contar toda a verdade a ela, vinha cultivando coragem, ensaiando as falas para a revelação. Derreteu-se com os pedidos da mãe para que ficasse, que ficasse para ver a moça. Leopoldo desconfiava que a velha houvesse inventado toda aquela história, afinal era muito sozinha e orgulhosa, jamais o pediria para ficar apenas por ficar. Engoliu a revelação e todo seu porvir, mas rejeitou o pedido da matriarca, disse que trabalharia no dia seguinte e que ela dissesse para a tal moça que passasse no domingo. Despediu-se com um beijo nos cabelos brancos.
Já no elevador, lembrou da conta de luz do mês já atrasada que pagaria para a mãe. Voltando a casa, viu Neusa em frente ao espelho. “Está bonita Dona Neusa, já pode sair desse espelho”. A mãe pareceu não ouvi-lo. Leopoldo já não conteve o choro. O boleto foi pago, úmido.


- Já é meia noite, não é tarde para essa visita, filha?
- Deixe-me entrar Dona Neusa, eu sei que tem perdido o sono.
- Não quero que entre hoje, desculpe. Hoje vi meu filho. Ele quer encontrá-la domingo, venha no domingo.
- Não, só posso me encontrar com a senhora, sabe disso. – disse a moça encostada na porta fechada.
- Hoje, não, por favor. Só mais um tempo. – pediu a velha.

A porta foi aberta. A moça hoje estava radiante, a pele alva reluzia juventude. O perfume inundava o ambiente. Ao ver Neusa encolhida na cama, abriu um sorriso tal qual um calmante, sentou-se ao lado da velha e abraçou-a.

- Vamos, Dona Neusa, vamos dar um passeio. – disse a jovem em tom angelical.
- Mas... – Neusa não conseguia pensar em razão para opor-se ao pedido, a companhia da jovem lhe era tão mais agradável que a solidão da casa.
Quando iam saindo de mãos dadas, a velha pediu para deixar um bilhete ao filho caso não voltassem antes do domingo. Conquanto soubesse que o retorno seria demorado.

Leopoldo no domingo vê o reflexo da mãe deitada na cama e um bilhete na geladeira “Fui passear, fique bem meu filho”. Não encontrou a moça e acabou almoçando sozinho.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Sorriso do tímpano

Acho que gostaria de fazer uma ode aos simpáticos, como se pudesse fazer jus a coisa alguma. Se pudesse, faria a este grupo de pessoas do qual me auto-rotulo (e não a contragosto como de praxe) só pela genuína diversão com pessoas na competência de existirem. Aplaudiria o cerne da primeira impressão mutável. Como alguém que detesta que o pé esquerdo levante pela manhã. Não como um beijo do político melado na testa do pirralho sujo. Essa simpatia descriteriosa que sai por aí distribuindo panfletos sobre shows esporádicos. O anonimato cabe aos não-carrancudos. Não me aborrece desdobrar-me dentro dos predicados a fim de derreter-lhes um sorriso outro no rosto austero. Gosto da aceitabilidade alheia, da casa cheia, das grandes rodas. Só concordo com a autenticidade do gesto. Eu gosto do bom dia, não do monge, gosto do bom dia. Encanta-me o bom, o bonzinho me é dispensável. Eu gosto é do padeiro, do moço da locadora, da dona Maria, do entregador, do turista, da moça que vende flores, do motorista. Eu gosto dos olhos apertadinhos de tanto sorrir, ao escutar tambéns. Gosto de ser a tecelã amadora treinando no ponto cruz do novo encontro. E sonho uma longa costura. Deixa-me dizer especificamente quanto cada um tem da fração desse meu todo espírito. Deixa. Eu posso dizer. Gosto tanto de gente, quero tantos possíveis. Chego a repetir tola, justificar meu toque, querer ser entendida, chego a falar sem ter fim. É isso. Quando crescer quero ser gente boa, só para ter por que na vinda. Acho que gostaria de fazer uma ode aos simpáticos lançando meus salves no ar, quem quiser que escute.