segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Meio meu

Ela se espalhou na cama. Bonita, com colcha marrom e estrelinhas que tem uma bola dentro, não são bem estrelinhas, são tipo só losangos. Ela também era bonita, mas vestia preto e as bolinhas na roupa eram em alto relevo. Qualquer abraço não viria só macio, seria relevante. Mas nunca foi de muitos abraços. Abria uma boca ácida, quando, por favor, a acidez dos outros conflita muito com a nossa.

- Olha, olha bem, você jura que essa mulher não é bonita?

- Ué, juro.

- Burro!

(-Tá, é, óbvio.) (Bancando o mau ator)

E não somente, porque este azedo, conflitava com a posse. Quando, por favor, a posse é tão inventiva.

- Ah é? Então “suponhamos” que você estivesse comigo, você ficaria com essa pessoa?

- Não... Nunca... Estaria só com você.(Bancando o bom ator)

- Mentira!

Quer dizer a posse aí não está tão clara, só pra quem pudesse perceber profundo os olhares acusativos dessa primeira frase. É a mãe já com o chinelo na mão e o filho com a boca suja de marrom, mas mãe eu juro que não comi o chocolate agora, guardei pra depois, e também eu juro que vou comer tudo no jantar. (É claro que a criança entrega em especial depois dos tambéns, mas também o tempo tinha que trazer qualquer coisinha de bom; ser sutil adianta com os poucos vividos e ameniza com quem se deixa amenizar. Aliás, vivência é tão sutil que tem muito pouco a ver com tempo.)
Apenas para o deleite da prosa é que faço a distinção das posses. Posto que não há relevância alguma no tópico. A posse do “isto é meu” é um pouco burra pras coisas materiais, só não é de fácil percepção, já pras imateriais é quase que completamente boçal , mas todo mundo insiste em mantê-las na idéia de não-fácil percepção. Certo, a saída para os não céticos é que perdoar ainda é divino; pros céticos, fica a racionalidade mesmo. O outro tipo é quando “isto não é meu, mas eu ajo como se fosse”. Risos. (Tem isto no diálogo supracitado, agi como se pudesse ser engraçado.)

Tem outra coisa também: “isso é muito meu”. Só que isso aí, tem posse zero. É só uma manifestação imprescindível e auto-suficiente que constata. Na verdade, serve pra muito pouco, quando em muita, chata, e quando certa, bela.

- Outro dia eu tava passando pelo Aterro, naquela parte que as árvores dão licença pro mar, e ai vê-se um pouco dele, um pouco de pedra, um pouco de prédio, em meio à tudo sabe? Daí falei, meio que em voz média, do tipo deu pro cara do lado ouvir e ele tava um pouco dormindo, O Rio é lindo.

- Po, isso é muito seu.


Vê? É bobo, quase bonito, com lapsos de imprescindível, e isso é muito meu.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Eu vou pra um dia vôo

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Luz de emergência

É o depois do branco quando ligo pro que me cativa um pouco. É a miséria de um colorido. Da pouca austeridade, que é o que menos tenho sem saber muito o que é. É como se acabasse um filme ruim, o entendesse ruim, mas triste e porque triste úmido. Na verdade, o branco é o clarão de fora, que faz feito nas máquinas fotográficas analógicas – eu não sei se é assim que se chamam, mas fiz a analogia de relógios – nelas a luz entra pra refletir, essa coisa da física que não entendo muito bem, só sei da existência. A física minha quer estar junto, mas isso é coisa outra.
Pois quando clareia fora, parece que clareia dentro. E quando escurece fora, dentro é a mesma coisa. Pequenino, mas assim.
Hoje faltou luz na casa, mas ainda era tardinha e as janelas arroseavam o sol indo embora nas paredes. Essa iminência de penumbra, eu concordo, deixa o ser humano à sentimento. O escuro certo dá medo, é irremediável a morte do dia, isso sempre, mas na falta de luz piora. Piora porque dá pra ouvir o quietar do tempo, escuta-se o ócio, o murchar das coisas, o silêncio em preto.
E eu não quero. Porque em minha alma existe plena e acompanhada uma atenção a todas as coisas. Importa que eu não apenas sinta, mas veja todas as coisas que me envolvem e acarinham. Apreço pelo macio da cadeira, do algodão, a textura antiga do livro, o liso dos cabelos, uns que o corpo supostamente decorou, mas de olhos fechados acentua. Parece incrível mas só eu quero mandar nos sentidos, sou demasiadamente humana para deixar que um fio quebrado, uma chuva forte ou qualquer acaso torpe me diga quando sentir muito. No beijo sim, no vento forte. Eu vou dizer quando. O fechar dos olhos é escurecer de fora, é morar só em si. Já me disseram que pisco muito.
Faltar luz não. Quem disse que estou preparada pra mim mesma? Melhor, quem está? Surpreender-se com o alheio é obtuso suficiente, agora consigo mesmo é foda...
Mas bem, continuo. Ainda não é noite. Não uso óculos. Vou cozinhando meu âmago para um existencialismo barato, que sei estar por vir.
Até que, me trazem uma lâmpada. Uma luz de emergência. O titulo parece tão óbvio agora.
Posso portanto, apenas continuar minha leitura de um romance factual que não suscita nada a ninguém, a não ser inveja do romance dos protagonistas, um filme úmido.
Pousa no branco um mosquito, sua sombra interrompe minhas letras, num trajeto não linha. Bato a mão no bicho, e prossigo.
Não. Ao vê-lo caminhar capenga, percebo que arranquei-lhe uma das asas, ele caminha em círculos, depois em ziguezague, e vai ralentando, ralentando , até não poder mais.
Choro, eu nunca quis lhe fazer mal. Me arrependi. Quero pedir desculpas, remediá-lo, desler a droga do livro, chorar mais, reavivá-lo, permitir que voe por ali seu vôo silencioso, seu bater de asas fraquinho, num corpinho tão frágil que nem mexe pra respirar, que vai esvaindo de vida sem dar um pio, dar notícia, sem dizer ao que veio e apaga só porque pára pra sumir junto a poeira.

Minha mãe passa pergunta o que houve, se é sobre o livro, e eu digo que não, matei um bichinho, ela diz que bichinho, eu digo um desses que voam, ela diz um grande, eu digo não pequenininho, ela diz ah e sai.
Pra mim, há sempre a surpresa do escuro aqui.

domingo, 22 de novembro de 2009

Muda

Entrego aqui a minha responsabilidade de fazer escrita ao ar. Pronto.

domingo, 1 de novembro de 2009

Mim

Só sou capaz de saber da gestação do eu de vez em quando.

Lógico, porque saber, que não é apenas saber, que o saber é coisa imóvel, então digo descobrir com um rê antes.

Às vezes só.

É o tempo de espelhado.

O espelho: O espelho me chegou quando eu ainda broto, que de broto pra planta é questão de tempo e fruto, de repente, nem dá. (O fruto : O fruto foi onde se mirou com vontade e acabou dando, é esquisito, mas planta não carece explicação, planta é coisa certa, é capim – olha isso que inventei, Em terra de vegetação quem dá fruto é rei, mas é bobo de falar alto.) O espelho espia escondido. Mas o espelho está, e mais, carece. Tanto é que eu já vi planta de muro, dessas que aumentam a perder de vista, regada só de lágrimas, eram dele que chorava. Tudo bem que espelho é de estalo, lembro que fui perguntado “Mas quando é que você virou isso?” (isso bom, o que é de se admirar) e eu respondido “Num sei”. E não sei mesmo, é surpresa tanta se enxergar assim nítido,que marca a gente de incolor pra não sair mais.

Coisas já sabidas: O fruto é matéria de ser, e não outra coisa.

Mexe transparente.

Maduro, quando for, fica.

(E o fruto, vou dizer baixinho, já que as maçãs avermelham, sinto crescer.)

domingo, 4 de outubro de 2009

Domingo dói. Domingo não respeita o ser humano que é só. Ele chega quando não é de sol e fica de dia e a gente dorme esperando acordar de tarde, noite pra remediar domingo.
Domingo não respeita o ser humano que é só. Até quando se está perdido, calendário vivo é um aperto no peito sem se saber domingo.
Domingo não respeita o ser humano que é só. Quando se espera, espera-se muito, ainda mais pra quem sofre de espera, são as coisas que tomam freio, adomingam.
O domingo é desrespeitoso. Porque é de fim, de natureza final, só por isso.

O domingo quando me olha nos olhos, desvio. Quando me toca os lábios, assopro. Quando me dói aos ouvidos eu surdo. Mas quando desisto, é domingo.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Ter-remota

Branco, mas tem havido terremoto que nem no filme onde a mocinha aparecia, ela e um buraco no meio da sombra , buraco profundamente de nada. Estou de pensar-me assim. Sentimentos ebulindo aflitos para chegar fora. E são burros desrraciocinados , atípicos meus reclamando àquela pré-meditação toda tomasse chá de sumiço, tomou. Isso não foi criado pra ser bonito, isso foi criado sem vaidade, uma flor só e não um bando delas, uma cadeira só e não um banco todo, e vazia, ninguém quer se sentar. Explico então o porquê da verborragia atual. Foi preciso um pouco mais da vontade para jogar nele toda responsabilidade de uns olhares assumidamente por mim começados, foi preciso um pouco mais da coragem que finjo ter, foi preciso um empurrãozinho de um moço médico que me diagnosticou paixonite e esse moço eu nem conhecia, mas é que costumo dar crédito aos cardiologistas leigos de coração, foi quando ele disse para agir que minha inércia escapuliu e o sorriso ofusca de brilho os olhos até então. As coisas quase não precisaram ser ditas, eu nada ganhei a não ser um troféu que é tanto meu quanto das descriteriosas feministas para as quais pouco importa a visão alheia – seja lá onde eu me encontre neste quadro evolutivo ainda distancio-me dessas bravas que queimam sutiãs e bocas noutros corpos, desprendidas, forasteiras, quase lindas. Dispenso a vitória, meu ego é sanfona involuntário, em dispensar entristeço. E careço, que vem de carência mas eu prefiro o ato, e atento pra quem me puder. Pisco alerta. Mas sou limpa cristalina e feia. Do único tremor que muda o mundo, intacta.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Sobre o pensamento, idéia sem berço

Em ônibus lotado eu quase, mas não vejo o pensamento dos outros, quanto aos meus, estampa. Dá vergonha aprofundar-se em ônibus lotado.

domingo, 23 de agosto de 2009

à (toda) prova

Eu sou o momento intenso antes da linha de chegada

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Do muito, do nada

Às vezes é preciso reencontro pra que através de qualquer coisa superaquecida renove-se um ser requentado. Murcho, do pão que sai do microondas e logo fica duro, e aqui não há mais espaço pra dureza, basta a vida quando não tão linda. E não vá nessa de acreditar que se sabem os exatos botões pra voltar novo, porque se fosse fácil o peito ficaria sempre morninho sempre em bom tom e nuances ocre ou, sei lá, laranja como preferirem. Dessas coisas não se tem controle já dizia aquele, senão digo eu. Não é bem felicidade o que se sente, ou pode ser, mas só por falta de precisão, essa felicidade carece de um nome cientifico, eu queria dar mas não sei.

É que o tempo torna as coisas tediosas, e há quem precise de pouco mais que respirar, mas eu nunca. Dessa natureza exigente, a mesma cobra que sai criada sai cheia de tédio, porque ela já sabe, e já saber é uma merda. Não levanto aqui a bola desses que tem sede de conhecimento dispensável, eu sei que a concha mais pesada do mundo pesava seis ou sete quilos, ou algo parecido, e isso não faz de mim uma pessoa feliz, ou melhor, eu li isso num papel de balas que tem aquelas curiosidades. Quando li, gostei, achei interessante, me renovou por hora, ou por uma fração mínima desta. A questão é que isso não me despertou paixão pelo mar, o mar que já amo.

Às vezes é preciso não comer balas por um tempo pra saber que o curioso era óbvio. É o caso de morar em si durante sempre e ainda surpreender-se. Descubro que meço o amor quando me surpreendo com o esperado, e que doce é o sabor que sinto agora. Por enquanto durar estou feliz. Por ainda não ter outro nome pra isso.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Limpa

Eu esqueci do gosto abafado da pele inflamável, do cheiro da minha boca cravada em nuca quente atrás do ouvido, do gesto comprimido em braços lisos da lama que o suor cria. Além do que é encontrar-se enrolada, agarrada nos cabelos por causa da vontade. E de ficar a vontade latejando e a vontade conjunto e a vontade transparente. Sentido arrepiado o exato peso do corpo nu, que é preciso, exato, que é dessas palavras pequenas, portanto mensuráveis. E quero sorrir quente até o finzinho agridoce. A parte oca do pensamento onde o que nos cabe é burrice animalesca misturada e gemida. Mas é uma delícia.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Sobre a super super estimação de um ser

Natasha diz:
-e assim sem duvida nenhuma eu acho que sou a melhor pessoa do mundo hahhaha
-e se eu perder isso
-mesmo que ninguem perceba
-o mundo que sou vai perder tambem

sábado, 25 de julho de 2009

do que sei

Não. Não me coube. Não coube o corpo que me deram.


E sei nada, eu só supunha.

Estou perdida onde já conheço.

Ainda murchei do pouco que era.

A certeza ainda que qualquer, não tem pena de mim.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Sobre tentativas

Do indizível que envolve meu coração

em isopor, fita crepe e vermelho frágil

De tudo que tenho e finda

De um sofrimento

Que agora pulsa outro de um sofrimento

Do que carece justificativa, sem ter pra dar

Do que tento explicar esse pretume, que é um troço

De acontecido, de repente

É o que não sei

Daí choro,

Eu choro disso.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Manifesto

Isso porque já acordo com aquela sensação contínua, e todo mundo diz que é pra se acordar outro, mas eu não. É uma raiva que me cobre junto com os lençóis, deve ser por isso que não sinto frio. A posição do corpo deitado requer respeito, boa gente, não é qualquer coisinha de cochilar não. Cochilar se cochila sentado com barulho de ônibus, em sala de aula, em espera de médico, em salões de beleza, em cinema não, ou sim não sei, mas acho quase sempre burrice então pra mim é não. Enfim. Pense que há todo um ritual de preparação, aquele “ir deitar”, ah isso é tão bonito. Há o banho quente, o chá , a mamadeira, os pijamas limpos; eu,por exemplo , troco pijamas com uma regularidade quase metafísica, porque é uma arte saber quando, inclusive minha avó diz que eu sujo muito pijama, mas é o tal do viés artístico ou você tem ou não.
De qualquer forma, as palavras aqui me saem indignadíssimas de estarem existindo, pois neste exato momento caber-nos-ia o silêncio, e este só. Mas não, imagine se é possível dormir. Aqui vivo num cortiço de luxo, pior, nos cortiços não devia ter essa política de boa-vizinhança, me acordou puxo a navalha. Não. Aqui eles só não dão o toque de recolher, então gozo da noite pacífica, eu os lixeiros e os gatos, ás vezes dá vontade de ir a rua pra abraçar a noite que só nós entendemos. Eis que de manhã assim, naqueles primeiros estágios de sono, começa o inferno. É um barulho é a porra do teto apapeloado, que nem vidro, porta e ouvidos fechados alivia, eu devia viver na NASA ela comenta, e eu entendo de física? Além da obrigação do começo de vida, que na minha opinião deveria ser optativo, existe também a obrigação do bom humor, mas isso faz parte da cultura dos programas matinais claro, foi a partir deles que o ser humano em geral aprendeu que pela manhã a gente acorda feliz, sorridente E comunicativo. Eu, do contrário, penso que a fala deveria ser racionada e em escala tanto menor os sorrisinhos. É isso.

Bom dia.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Simples

É que eu nao acredito muito em amor conseguido
só em amor deslumbrado

sábado, 20 de junho de 2009

Pintor

O toque meio encostado agravou o que me despertence

Quis perguntar qual amaciante ele usava na vida

Mas quando, amoleci

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Os pés da bailarina gangrenam de sua silhueta maquiada

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Vida doce

Durante o sono deitado em jardim os morangos silvestres desciam a serra em fila indiana pra não se espatifarem em rodas burras, que só sabem fazer girar nessa vida, os morangos riam das rodas, e riam também das bananas que lá do alto ameaçavam queda, porque umas tinham sim vontade suicida, só que era fácil saber qual e com essas eles não gozavam não, respeitavam. Os morangos respeitam a crueza. Então temem como bons morangos o fim por bobice, andam no cantinho da estrada, divisa do asfalto com terra, bem seguros. Os pés daquele cansaram foi então que ele gritou, gritou até estremecer a cabeleira verde pra ser ouvido pelo cortejo inteiro. Batalhou com o barulho apenas com a voz desembainhada não era tarefa fácil, pois venceu. Todos então se lembraram da existência dos pesinhos e reclamaram de dor forte procurando bancos para se amontoarem. Ao encontrar o tronco calado, perguntaram se ele não podia abaixar mais um pouquinho pra subirem no descanso. O tronco olhou meio rabugento e respondeu que não poderia, que estava cansadíssimo de tanto peso inútil por sobre si e disse mais, que não era ele quem se recolhia, culpa dos moços. De súbito, organizou-se um motim injuriado que começou a cantar escárnio ao velho tronco, os morangos em coro reclamavam ao tronco velho, pequeno, egoísta, feio e mal comido. O tronco nada fez senão cerrar os olhos, digo fechar. Já mais calmos resolveram sentar por ali mesmo e jogar papo fora. Os morangos são assim, eles não tem pressa de nada, porque conhecem o tempo, são amigos de longa data, o tempo disse que andava com preguiça e que agora corre para não se dar por perdido, perguntou se os morangos o queriam acompanhar, mas eles não, não precisavam, não tinham medo de ficar pra trás. Dentro de cada morango na parte branca eles sabiam da tristeza do tempo amigo, e da certeza de que chegariam lá, onde o tempo que chega num instante vai passar. Assim, sem pressa, sentados em frente à estrada perninhas cruzadas, comentavam sobre como é breve ser morango, e quão dolorida eram suas vidas pensantes, e quão divertido é andar por ai em bando fazendo coisas, e quão bonitos são os morangos crescendo, e quão mais sábios aqueles que não quiseram vir... Os morangos se gostam, eles se bastam. Eis que um, não menos pleno, perguntou se os outros não tinham medo. E claro que tinham. “Porque eu tenho muito medo de quando não se é mais morango, porque pensei que me lembraria, posto que nem sempre existi, mas não me lembro. Tento, tento e não me lembro. É que eu ouvi dizer que morango não tem alma, então só serve pra sumir.” Silenciou tudo, até os carros. Quando acordou resolveu comer umas frutas que estavam ali pelo chão, achou esquisito ter morango jogado, mas comeu depois foi catar banana lá longe, sentou-se num pedaço de tronco e ficou ali comendo. Depois de um tempo de sentado, pensando na morte da bezerra, sentiu uma coceira na barriga, coceira engraçada dessas que não coçam e não dava enjôo, era até bom, cochilou pra descansar.
Os morangos transparentes faziam festa pois alugaram um salão na barriga quentinha, descobriram que o bom da vida é mesmo ser morango.

Cama de lápis

Do que se auto-é outro. É o que mais gosto.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Meio

Acordei no meio do pedido, como quem acorda assim no meio de coisa com enredo. Já não recordo as singelezas primeiras, então digo inventado, perfumo com palavras. Crio que aconteci, assim murcha o peso do indispensável, dessa forma respiro fundo a pureza do que quiser, do erro que posso, da grandeloquência em grão. Assim, (quase) pertenço ao sempre.
O que se pedia, se ainda não voou o pensamento ligeiro, era um saldo de estrela órfã em mim.
Umas coisas que entendo da Bahia, um acorde próprio, um pé de ouvido, um fazer falta, uma conversa amorcegada, um calorzinho, um sem querer à-toa. Pedi para não perder-me(se) do mundo(.) o verniz.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Umas

Qual é o remédio pro dessentimento? Porque o que sinto, se sinto é tudo tanto fazendo. E eu cá fora. Porque sempre fui a melhor atriz, e nunca deixei de ir a qualquer cerimônia por falta de roupagem, eu ia nua, sem subterfúgios quaisquer. Se era triste, triste; se feliz, feliz. Entregava-me a personagem por mim criada e acreditava nela. O eu-profundo, o eu-âmago (acho que esse do qual falo nasce mudo e bruto, mas nasce, ainda não sei se morre, mas só a hipótese é a dor do mundo, e digo por mim, pelo meu. Esse do qual falo, não é aquele eu-solidão que é lindo também, só que é pensado. Do que falo antecede, entende? Mora atrás, veio antes. Nem ovo, galinha ou alma, esses são personagens. Falo do clima do que se é – e ainda não é bem ele, mas chega perto.) era pleno e satisfeito, e de certa forma livre, no suor, na saliva, na seiva pela atriz produzida. Era aí que eu ganhava vida. Agora o que acontece é o tempo. Hoje represento mal e o pensamento caminha em fila indiana, coisa de gente. Coisa de gente que nunca parou pra pensar que se é no mínimo dois, e seguem assim unos, e assim não sei, pra mim nunca serviu. Sentar na calçada tudo bem, ótimo, ver a vida passar é valido, juro, mas dormir não. É engraçado notar que não quero dormir. Eu não quer dormir.(e aqui não falo de sono) Tanto que venci a insônia, venci os arrepios que vinham inexplicáveis, venci as câimbras, venci-me, por completo. Sobraram uns personagens sonâmbulos e acéfalos que ainda posso sou.

Eu estou cá fora,
Numa platéia pouca
Assistindo-a improvisar
Querendo (num clima que me é profundo
E não duvido, quente)
A mim retornar.

sábado, 9 de maio de 2009

Sobre as coisas em mar

Das coisas que são só coisas

São umas coisas sós

Coisas azuis saudade

Coisas profundas

Coisas cheias de coisas

Ou coisinhas sujas

Coisas que vão e retornam

Coisas de calma

E coisas ressaca

Coisas que não bastam

Coisas sempre primeiras

A coisa toda, líquida

Coisas que quando noto escorrem do olho quase salgadas

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Àquela do nome traduzido

E para além dividíamos o chão. Pisávamos as mesmas coisas, a diferença era no dela, menorzinho, de alguma cautela e calejado. Saudade dos pés. Saudade desses que um dia se encontraram pra se entender. Porque foi preciso. Houve precisão. A vinda não haveria de ser tamanho despropósito. Se os pés imundos caminham, destino há. Sorriamos eu e ela, porque tinha a mesma prosódia, o mesmo ritmo. Pra-fa-lar-só-as-pri-mei-ras-sí-la-bas, tinha que descobrir antes a palavra inteira no silêncio de si. Aos poucos,era eu quem recebia a garoa do coração felino, era tão gostoso quando ouvia essas confissões geladinhas, por partilharmos o mesmo medo, que antes de medo, mesmo. O mesmo é a jóia nossa, que nem no Rio se rouba, está seguro, herança, mesmo.
Era de dar inveja, porque não costuma ter disso. Eram muitos dentes e danças, e as coisas em mar. E não pense você que isso aí é sentimento sozinho. Não. O que era transcendia, catarse física, amor de irmão. Assim mãos dadas, pegamos o primeiro ônibus ao acaso, com a sorte mais certa, aquela dos pés conjuntos, não tem erro desce no ponto final. Acho que me distraí, só pode ter sido.

Ela foi.

Eu fiquei.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Mais do mesmo

Tem a sensação corrida de não ter mais tempo pra fazer nada, ainda que seja somente o que faço. Debaixo do edredom ou com os pés no sol. Não gosto das tarefas, eu gosto do trajeto. To sem hora pras unhas e pros recados. Pensei em três textos e três pretextos para não escrevê-los, ta certo, não eram tão bons assim. Mas era letra vaidosa, língua. Quero uma língua carnuda e habilidosa, curtida, mediana, lúcida, úmida, uma língua bem úmida de presente. Já descobri no pouco que andei, que remédio e não só pra mim é língua e todas as maravilhosas texturas lexicais por ela produzidas. Língua cola pra grudar quem quiser e bomba pra explodir quando.

Vivo um desespero calmo, desses piores. A amiga disse, você tá em crise, é visível. O problema é que tem tempo, o problema é que alivia vez por outra, eu sei que sim, não é dor perene. O problema é da ordem dos planetas que desde quando brotada no mundo, puseram-me uma ânsia louca por porra nenhuma. O problema mesmo é que quando penso que consigo, eu quero menos disso e mais de qualquer coisa outra.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Nine out of ten

Um dia, morro de enganação. Coca zero mata, mas se mija, enganação não.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Dieta

Assim, deixa três minutos na panela espera ferver e está pronto, tá bem. Quanto de encontro cabe em três minutos? Quanto de calor até fervilhar? E depois de pronto, faz-se o quê com isso?

Esse glacê é de que? De nada, glacê de nada. O recheio também não é lá essas coisas, é seco, por mais que tentasse nada derretia a boca, nem uma fatia de sorriso. O bolo é de quê? De bolo.

Enche barriga até. Mas tenho fome.

terça-feira, 31 de março de 2009

O jorge

O Jorge é melhor equilibrista que eu. Ele bebe da água que arde muita, em questão de copos o pessoal diz que no número tem até zero, eu nunca vi, mas não duvido. Uma vez o Jorge disse que a morte era o caminho mais simples, eu disse que era relativo, porque nuns dias eu achava que sim e noutros não, ele disse que tá. Outro dia também, ele chegou arregalado dizendo que esqueceu que ontem, já era hoje. Depois acalmou. E contou que a abelha era mais esperta que o dono e menos que os filhos. Depois eu perguntei do Nordeste, ele falou da enchente de sol. Depois eu falei do sul, ele disse se era no Brasil. E o Rio? É lindo. Aí eu falei pra sentarmos, pois sim. Ele disse que não mexessem no seu peixe, eu fiz cara de ué, ele contou que o filé era fácil, e que a cabeça era ossuda, eu disse e daí? Daí que o meu é posta. E não tem muita espinha? Não, ele disse, tem muito pão. Olha Jorge, eu disse a ele, tem dessas coisas que você não sabe, não é? Ele calou. Passou, esqueci da pergunta e o caminho foi silencioso, até logos até nossas casas. Amanhã ele chegou rindo falante, cheio, pedi um picolé de chocolate, ele um de coco que tinha pedacinhos. E disse, e você? eu disse, pois é não sei. Você é logo ali, foi o que ele disse. Aonde? Ali. Mas eu não vi aonde era. Ficamos versando sobre a menina que fazia roupas, aí eu perguntei se era verdade o que diziam, ele perguntou se dava pra ver, eu disse que sim, ele escondeu o rosto nas mãos e brotou água por entre os dedos, eu disse que se acalmasse, pois mesmo se ela não quisesse já era bom de sentir. Ele disse como? E eu provei, Olha Jorge eu dizia, é só ver. Pronto, ele concordou, e falou baixinho, você é boa nisso. No jardim, o Jorge falou que não sabia nome de flor, nem eu sabia. Ele disse que Deus era um que tinha chutado o nome das coisas, e tinha acertado. Aí inventamos uns nomes pra porta e cachorro e vizinho acho, mas durou pouco tempo. Ficamos assim nossos encontros para sempre diferentes, acasos. Sabe, ele disse, acho que eu não sei mais tudo. Isso é normal Jorge, depois passa. Fomos à ponta pra ver quem ficava mais tempo equilibrado, ele caiu logo, lá de cima olhei, ele me emprestou um sorriso úmido e sumiu. Sumiu.

quinta-feira, 5 de março de 2009

coisas

Porque o que é impensado é descaso, quando não devia ser, porque há uma obrigação de pensamento tão forte, que não há espaço pra pureza, pro genuíno. E quantas vezes? Se já foram tantos, todos já foram... falar do quê? O que de extra? Do intrépido? Do homem bambo na corda, do bamba no cordão? O carnaval passou. O que embelezar senão o concreto, o pó? Queria que de tanto ir, fosse, mas vai não. Então resolvo deixar, mas não posso/quero. Eu tenho pensado um tanto agitado.Permito então, que fazer? Se tinha uma coisa boa era de inventar. Uma vez disseram que quando era eu que dizia, que não era bom, nem ruim, nem médio. Era difícil. É.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Daqueles assim, moras aonde? "Estado de riso"

bloquinho

Eu antena quando olhei, vi. Seria assim mesmo, assado. Um asfalto em declive queimando as solas gastas dos filões todos, e um tantam alto pesado, fosse meu talvez, diante da gente toda que bebia os sambas se abriu com ele e só com ele meu primeiro sorriso, largo, cheio de dentes... porque antes era só moldura, sorria porque não era triste, porque tanto fazia, mas quando percebi o clarão do moço que sem querer abriu. Abriu-me o riso, solto, desabrochado.
O rosto era assim qualquer, branco, suado e piscou. Desses que quando se nota, lembra, intriga. “Eu não te conheço de algum lugar?”. Não perguntei, achei antigo, porventura fosse, a dúvida ainda mais vermelha de sol, vergonha, porque não é assim de encarar, encabula. Ele não... usava chapéu. Ai de mim com esse tipo que ainda não me livro. Gosta de uma cachaça, coisa de vó, não tem jeito, sei não. Pegou-me pra dançar, que coisa é essa hoje em dia não é de par, no entanto deixa, quis dizer, mas não, melhor. Ombro bom, seguro, parece bobagem. Elixir, moço-romance e rodar até o sol tirar pestana e o assovio afinar quase mudo.
Tudo logo foi cedendo, um povo quarta-feira. De sobrar nós e uns pingados que quase não estavam. Assim, coube então. Doeu. “Então”. Pensei também que a voz quebra a magia, pensei assim que a melodia era mais, de fato, como nunca quis em silêncio fitar, gravar aquilo que sonhei.
Mais. Senti alegre despedida, gosto pele e saliva, puro. Adeus, carnaval.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Crua

Para poder olhar-se refletida e reconhecer tal silhueta, cheia de nuances curvas e femininas, de rio janeiro calor escorrer por entre os espaços macios de manto claro. Que de claridade transparece veias verdes, assim quase tatuadas, umas raízes, umas histórias. E unhas sem tempo curtinhas de coloridas tintas feias. Umbigo no meio, luneta das coisas mundo. Lá dentro observa, de vez em quando grita, mas contenta em olhar, aprende pra errar depois. Luneta pura não, aquilo que vê confuso e bonito, aquilo colorido, não queria dizer caleidoscópio, tem nome feio para o que é, mas é. Tem que ser. Depois na cabeça uns caracóis meio lisos, indecisos, da mesma cor circular dos olhos e das pintas, constelação que não morre. Sabe aquela que desponta primeiro na noite, que talvez tenha nome de planeta, aqui não precisa ter para igual beleza, fica no dedo perto da lua. E, antes que descreva o rosa luz da boca, paro e apago, para que a menina traga o reflexo de volta do Olimpo.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Cigana

Existe um eu em toda a versatilidade que nunca morre. A cigana com lenço furado e cinto de moedas de ouro falsas que ela só usa pra fazer barulhinho. Eu sou a cigana falida que desentende a própria sorte. Meu único poder místico é descobrir de longe o grande amor utópico. Ninguém vê, ninguém compreende, por isso não tenho fila de madames à campainha. Só para mim serve. É meu o primeiro olhar clínico. Não tem nada de roleta, nada de à toa, não tem nada de esmo. O que existe é acaso nos olhos, que por encontro se venturam, ou nem tanto, se só os meus embaçarem ok. Ok por toda a boniteza do platônico. Tudo bem se eu e uma meia dúzia de românticos, e apenas, dermos crédito a essas profecias do íntimo. Eu não to nem aí se outros acham que é tudo putaria camuflada. Putaria por putaria existe claro, mas a cigana já deixou de ser rasa faz um tempo. Por isso quando os meus búzios, minhas cartas, as bolas de cristais, e os ebós, incrustados no dentro apontam-me a pessoa, mesmo errante, eu vou. Vou porque da vida quero o sumo. Vou porque o prosaico demais cansa. Vou porque só tenho fé na cigana.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Esboço

E lá de longe todos os olhos sabiam do pedaço de pele tatuada que ela não queria transparecer. Via-se aquilo que ela esfregava a custo de saliva e lágrimas. Diziam que era feio o estofado e se arrependeria. Claro que se arrependeria de uma forma ou de outra, suas perfurações, suas entranhas, tudo impregnado d’uma tinta. Porque era assim mesmo que percebia Théo. Assim, como Chico disse que ficaria no corpo para dar coragem. Uma vez corajosa, de uma vez por todas resolveu-se com a navalha espirrar nos azulejos todos, sem, porém nem bem tentar, era o medo de outro eterno. Pois desde sempre o para sempre a atrapalhava e quando a alma já dizia nunca a boca calava de afagos. E os amigos já a convidavam contando mais um, ou desconvidavam mesmo, até que um dia sumiriam de tentar. Também quando começava “eu...”, ele vinha e “eu sei como é”, como se adiantasse, mesmo que soubesse. O problema eram as manchas, os poros. E Théo se achando brisa. Certa vez caiu da escada e ficou com a cabeça nos degraus, ele desceu esbaforido. Como é que soube que eu havia caído? Me ouviu? Ela quis cair quietinha, para poder cair, para poder temer, depois ouvir os músculos rangendo, o quente do olho, o chão e levantar-se, sobrevivida cheia de lindos roxos. Sim, lindos, porque seus e seus somente. Até chegar o Théo com gelo na mão para clareá-la de cuidados, alegando sua aparição como uma forma de conexão supranatural, depois de percebê-la sã, trocou sua apreensão por riso e mimos. “Não chore, estou aqui”. Ela chorava.
E, ás vezes, ligava cheio de declarações doloridas. “Eu volto logo, não se preocupe, a saudade me mata. Essas japonesas aqui são tão sem sal, gostaria que pudesse ter vindo para nos divertimos à custa dessa gente homogenia. Você teria adorado essas comidas minimalistas e os prédios em silêncio. Estou levando uma máquina nova, era surpresa, mas sabe que não consigo, é linda, vintage. E um bonsai lá pro estúdio, vai ficar bom na sua mesa, eles dizem que não dá trabalho cuidar, sabia? Tenho falado com o pessoal, por isso nem preciso das suas notícias mornas amor, as fofocas chegam cedo, ontem. Ontem ou amanhã? Fico confuso com esse fuso-horário, não durmo direito, quando chegar aí você vai abraçar um panda, gordo e com olheiras, te amo, acho que só você é meu descanso. Manda os amantes correrem que eu chego na segunda, um beijo querida.” Ou somente, “ Olá,essa é mesmo sua voz, que bom que esta viva, e minha, até.”
A mulher de Théo era perfeita em todas as suas arestas e contornos, com os cabelos dourados escondendo os ombros, as unhas e a boca pintadas de vermelho, e a pele branca branca branca, coberta com aquelas roupas que em qualquer outra seria descaso. Foi assim, ela tinha saído por que a tosse não parava, e ele voltava correndo fechando o zíper da calça jeans. Pronto, só isso. Aí ele dizia, que nada, não foi só isso. A gente se esbarrou nessa hora, e depois no final eu tava com a Lígia, que saiu pra comprar um chocolate sei lá, nesse meio tempo perguntei se ela tinha gostado do filme, ai ela com essa coisa blasé dela me disse não gostava de perder nenhuma parte de nada, nunca. “Eu era burra Théo, até hoje ele acha que tudo que eu dizia tinha poesia”, “Claro que tinha amor, e tem. Pobres de vocês que não tem uma mulher como a minha feita até de silêncios poéticos”.
Então ficaria assim, Théo e o casamento perfeito, Théo e sua grande história de amor, Théo e sua paixão irremediável. De uma coisa ela tinha certeza, o amor é mesmo singular. Para não dizer que não tentou, ela saiu uma vez com uma amiga da irmã, dois anos mais nova, enquanto Théo estava indo para a exposição de uma foto que ela tinha feito numa galeriazinha em Viena. “Não quero ir Théo, você sabe que tenho pavor de avião.” Então ele foi à Europa cheio de orgulho e um portfólio com os trabalhos da esposa mais talentosa do hemisfério Sul. Enquanto ela, acompanhada da coleguinha, tomava uns drinques coloridos numa dessas boates, que embora não fosse, ela sentia-se muito velha para freqüentar. Encontrou Pedro, antigo amigo de faculdade. Aceitou sua carona para casa, e ao chegar à porta do apartamento, ela disse que tinha alguém,não ali, mas na vida. Ele, mais óbvio do que mamão papaia disse que não era ciumento. Quando Théo voltou no dia seguinte pela manhã, do elevador já se ouvia, foi um sucesso, foi sucesso, sucessivamente. Ao entrar em casa, propriamente, ele vê deitado no sofá com a camisa meio aberta e um short seu, um sujeito de braços desenhados com um chapéu e sapatos de Chaplin jogados no chão. “Querida tem um desses moderninhos dormindo no meu sofá, do que se trata?”. Oi Théo, aquele é um antigo amigo da faculdade, dei um short seu pra ele dormir porque ele estava muito bêbado pra dirigir. Sabe do que ele tem cara? De que? De mamão, um cara de mamão, não é? Onde você o encontrou? Na Boate. E desde quando você gosta de boates? Desde nunca, não gosto. Vocês dormiram juntos? Que pergunta Théo, porque eu mandaria alguém dormir no sofá depois de uma foda? É... Não sei... Foi um sucesso amor, um sucesso!
Então resolveu que seria daquele jeito mesmo, aquele Théo e ela. Para conformar-se com aquela realidade grudada, ela resolveu engravidar, uma gravidez planejada claro, assim, o assunto não seria motivo de surpresa ao marido que poderia enfartar de felicidade. Mas ela esperava no filho um motivo de distração e até mesmo de divisão da atenção de Théo – logicamente, amante de crianças.
-Théo, teremos um filho.
E ele não disse nada, apenas trancou-se no banheiro e ao sair com o rosto inchado soluçou “meu grande amor”.
A gravidez mostrou-se tranqüila. No primeiro mês, Théo comprara uma lâmpada mágica e ela dizendo que ainda era cedo para brinquedos, mas segundo ele, este seria para ela, Théo realizaria todos os desejos da donzela mais bonita de toda Arábia. Sou brasileira.
O pai coruja preparava a mala para passar dois dias em Buenos Aires com a irmã da esposa, que ficara no seu lugar no estúdio, não na parte artística, mas na administrativa, e desta vez para Théo não embarcar sozinho ela o acompanharia representando sua mulher e parceira de trabalho, a irmã barriguda achou a idéia um barato e pela primeira vez em anos acompanhou o marido até o aeroporto para despedir-se.
-Veja lá se não morre de ciúmes meu bem, sua irmã é um perigo e magrinha assim.
- Tá certo Théo, Francis boa viagem, vê se me compra um Alfajor. Deu um beijo na testa dos dois e voltou para o táxi.
Durante os dois dias, ela tivera uma azia mortal e a diarista dizia que era normal, sinal que a criança vinha cabeluda. No banho ela sentiu um pouco de nojo ao lavar seu cabelo, pensando numa criança com longas madeixas imergindo por entre suas pernas. Ela às vezes tinha uns pensamentos assim sombrios, sobre diversas coisas. Sempre sonhava que ao atravessar a rua seria atropelada, ou que ao olhar pela janela seria decapitada, umas coisas bizarras que vinham no imaginário, quando acordada. Mas na noite do segundo dia, ela começou a preocupar-se com a irmã e Théo que não haviam chegado. Entre alguns pesadelos nos breves cochilos e telefonemas para caixas postais, ela foi até o quarto ainda vazio e no porta-retrato ao lado do berço havia uma foto de Théo e Francis, sua irmã, beijando a barriga com um sorriso desenhado de batom embaixo do umbigo estufado. Na foto, ela parecia distante, como sempre, num sorriso inteiro, com jeito de metade. Chorou. Porque se desaparecesse da foto, como gostaria no dado momento de não tê-la tirado, seu marido e sua irmã estariam se beijando. Seriam felizes os dois. Tão mais felizes que ela, porque naqueles olhos apertados havia uma alegria que ela nunca sentira e temia nunca sentir, os dois pareciam completos. E como eram bonitos, ela esquecera-se de como Théo era charmoso, de como seu corpo mesmo curvado e mesmo com aquela barriguinha avantajada dos homens com meia idade, Théo era lindo. E Francis, era um reflexo seu mais novo e sorridente, e ela sabia-se bonita.
Teriam os dois se apaixonado, estariam fazendo amor ao som de um tango antigo. Se for, tomara Deus que seja sem culpa, que se esqueçam de mim e da minha condição pouco sensual. Francis ficaria tão feliz, há anos procura alguém que acompanhe seu ritmo amoroso, ela é tão sentimental, dessas que precisa de flores e bombons, dessas super carinhosas, uma eterna romântica, minha pequena Francis que ventura seria encontrar um par como Théo, o encaixe perfeito, o encanto do mundo resumido em par. Que leves! Até eu suspiraria pelos dois. Que aproveitem a viagem então e que permaneçam quantos dias for necessário para amadurecer-lhes esse provável amor.
Voltou para cama e como só conseguia deitar-se de lado, assim ficou até os primeiros raios incomodarem a visão, amaldiçoando as palavras por ela ditas. Que abuso, os dois juntos, seria uma tamanha traição, deixando-a nesse estado, prestes a colocar uma criança no mundo. Uma mãe solteira, era isso que o gênio da lâmpada havia reservado para ela, seria essa a surpresa. Não, não seria possível suportar o vazio do apartamento, o vazio da licença maternidade, enquanto Francis, jovem e esbelta roubava literalmente seu lugar, daqui a pouco Théo a ensinaria a manusear a câmera e aí sim, terminaria emendando a licença com a aposentadoria por invalidez, se é que isso é possível.
Ligou a televisão. Desses jornais da manhã requentados, a notícia era a queda de um avião. A primeira coisa que fez foi ir ao banheiro vomitar. Não tinha vomitado nenhuma vez durante a gravidez, segundo Théo ela era uma fêmea forte, mas não, agora a tão almejada solidão a assombrava. Como seria viver sem tinta? Parecia que tudo que havia dentro queria sair, abraçou-se a barriga ninou-se. Não conseguiu pensar em nenhuma musica para cantar, então começou a inventar palavras numa melodia própria. Ouvia-se Esfera, Cor, Théo, meu mar, paz, minha cor, Francis, deus, de sozinho, entender, de novo. E ficou assim repetindo feito mantra.
O bebê chutou uma vez, duas, como quem diz, estou aqui. E depois vieram umas dores que ela entendeu por contração, dores muito fortes, a dor do mundo. Que só pode pegar uma duas mudas de roupa uma pra ela e uma pro filhote, enfiar dentro da bolsa e procurar o telefone do médico na agenda do celular chamando o primeiro táxi que passasse.
Vinha um de lá. Amarelo vivíssimo, a vida, uma esperança em cor mudada, e vinha rápido pronto, chegaria ao hospital num minuto. “Doutor Flávio sou eu N... Isso pelo visto não vai ser cesariana, vai nascer hoje, agora. Ah! Doutor, já estou a caminho sim, até logo”. Não. O motorista fez um sinal que estava cheio. “Não! Sou uma grávida! Tenho prioridade!” As lágrimas escorriam de desespero. Uma senhora parou para oferecer ajuda tentando acalmá-la. O mesmo táxi deu ré, nem bem a senhora foi abrir a porta de trás, esta se escancarou e lá do banco de trás com quatro olhos esbugalhados (re)encontrou o amor.