sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Cigana

Existe um eu em toda a versatilidade que nunca morre. A cigana com lenço furado e cinto de moedas de ouro falsas que ela só usa pra fazer barulhinho. Eu sou a cigana falida que desentende a própria sorte. Meu único poder místico é descobrir de longe o grande amor utópico. Ninguém vê, ninguém compreende, por isso não tenho fila de madames à campainha. Só para mim serve. É meu o primeiro olhar clínico. Não tem nada de roleta, nada de à toa, não tem nada de esmo. O que existe é acaso nos olhos, que por encontro se venturam, ou nem tanto, se só os meus embaçarem ok. Ok por toda a boniteza do platônico. Tudo bem se eu e uma meia dúzia de românticos, e apenas, dermos crédito a essas profecias do íntimo. Eu não to nem aí se outros acham que é tudo putaria camuflada. Putaria por putaria existe claro, mas a cigana já deixou de ser rasa faz um tempo. Por isso quando os meus búzios, minhas cartas, as bolas de cristais, e os ebós, incrustados no dentro apontam-me a pessoa, mesmo errante, eu vou. Vou porque da vida quero o sumo. Vou porque o prosaico demais cansa. Vou porque só tenho fé na cigana.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Esboço

E lá de longe todos os olhos sabiam do pedaço de pele tatuada que ela não queria transparecer. Via-se aquilo que ela esfregava a custo de saliva e lágrimas. Diziam que era feio o estofado e se arrependeria. Claro que se arrependeria de uma forma ou de outra, suas perfurações, suas entranhas, tudo impregnado d’uma tinta. Porque era assim mesmo que percebia Théo. Assim, como Chico disse que ficaria no corpo para dar coragem. Uma vez corajosa, de uma vez por todas resolveu-se com a navalha espirrar nos azulejos todos, sem, porém nem bem tentar, era o medo de outro eterno. Pois desde sempre o para sempre a atrapalhava e quando a alma já dizia nunca a boca calava de afagos. E os amigos já a convidavam contando mais um, ou desconvidavam mesmo, até que um dia sumiriam de tentar. Também quando começava “eu...”, ele vinha e “eu sei como é”, como se adiantasse, mesmo que soubesse. O problema eram as manchas, os poros. E Théo se achando brisa. Certa vez caiu da escada e ficou com a cabeça nos degraus, ele desceu esbaforido. Como é que soube que eu havia caído? Me ouviu? Ela quis cair quietinha, para poder cair, para poder temer, depois ouvir os músculos rangendo, o quente do olho, o chão e levantar-se, sobrevivida cheia de lindos roxos. Sim, lindos, porque seus e seus somente. Até chegar o Théo com gelo na mão para clareá-la de cuidados, alegando sua aparição como uma forma de conexão supranatural, depois de percebê-la sã, trocou sua apreensão por riso e mimos. “Não chore, estou aqui”. Ela chorava.
E, ás vezes, ligava cheio de declarações doloridas. “Eu volto logo, não se preocupe, a saudade me mata. Essas japonesas aqui são tão sem sal, gostaria que pudesse ter vindo para nos divertimos à custa dessa gente homogenia. Você teria adorado essas comidas minimalistas e os prédios em silêncio. Estou levando uma máquina nova, era surpresa, mas sabe que não consigo, é linda, vintage. E um bonsai lá pro estúdio, vai ficar bom na sua mesa, eles dizem que não dá trabalho cuidar, sabia? Tenho falado com o pessoal, por isso nem preciso das suas notícias mornas amor, as fofocas chegam cedo, ontem. Ontem ou amanhã? Fico confuso com esse fuso-horário, não durmo direito, quando chegar aí você vai abraçar um panda, gordo e com olheiras, te amo, acho que só você é meu descanso. Manda os amantes correrem que eu chego na segunda, um beijo querida.” Ou somente, “ Olá,essa é mesmo sua voz, que bom que esta viva, e minha, até.”
A mulher de Théo era perfeita em todas as suas arestas e contornos, com os cabelos dourados escondendo os ombros, as unhas e a boca pintadas de vermelho, e a pele branca branca branca, coberta com aquelas roupas que em qualquer outra seria descaso. Foi assim, ela tinha saído por que a tosse não parava, e ele voltava correndo fechando o zíper da calça jeans. Pronto, só isso. Aí ele dizia, que nada, não foi só isso. A gente se esbarrou nessa hora, e depois no final eu tava com a Lígia, que saiu pra comprar um chocolate sei lá, nesse meio tempo perguntei se ela tinha gostado do filme, ai ela com essa coisa blasé dela me disse não gostava de perder nenhuma parte de nada, nunca. “Eu era burra Théo, até hoje ele acha que tudo que eu dizia tinha poesia”, “Claro que tinha amor, e tem. Pobres de vocês que não tem uma mulher como a minha feita até de silêncios poéticos”.
Então ficaria assim, Théo e o casamento perfeito, Théo e sua grande história de amor, Théo e sua paixão irremediável. De uma coisa ela tinha certeza, o amor é mesmo singular. Para não dizer que não tentou, ela saiu uma vez com uma amiga da irmã, dois anos mais nova, enquanto Théo estava indo para a exposição de uma foto que ela tinha feito numa galeriazinha em Viena. “Não quero ir Théo, você sabe que tenho pavor de avião.” Então ele foi à Europa cheio de orgulho e um portfólio com os trabalhos da esposa mais talentosa do hemisfério Sul. Enquanto ela, acompanhada da coleguinha, tomava uns drinques coloridos numa dessas boates, que embora não fosse, ela sentia-se muito velha para freqüentar. Encontrou Pedro, antigo amigo de faculdade. Aceitou sua carona para casa, e ao chegar à porta do apartamento, ela disse que tinha alguém,não ali, mas na vida. Ele, mais óbvio do que mamão papaia disse que não era ciumento. Quando Théo voltou no dia seguinte pela manhã, do elevador já se ouvia, foi um sucesso, foi sucesso, sucessivamente. Ao entrar em casa, propriamente, ele vê deitado no sofá com a camisa meio aberta e um short seu, um sujeito de braços desenhados com um chapéu e sapatos de Chaplin jogados no chão. “Querida tem um desses moderninhos dormindo no meu sofá, do que se trata?”. Oi Théo, aquele é um antigo amigo da faculdade, dei um short seu pra ele dormir porque ele estava muito bêbado pra dirigir. Sabe do que ele tem cara? De que? De mamão, um cara de mamão, não é? Onde você o encontrou? Na Boate. E desde quando você gosta de boates? Desde nunca, não gosto. Vocês dormiram juntos? Que pergunta Théo, porque eu mandaria alguém dormir no sofá depois de uma foda? É... Não sei... Foi um sucesso amor, um sucesso!
Então resolveu que seria daquele jeito mesmo, aquele Théo e ela. Para conformar-se com aquela realidade grudada, ela resolveu engravidar, uma gravidez planejada claro, assim, o assunto não seria motivo de surpresa ao marido que poderia enfartar de felicidade. Mas ela esperava no filho um motivo de distração e até mesmo de divisão da atenção de Théo – logicamente, amante de crianças.
-Théo, teremos um filho.
E ele não disse nada, apenas trancou-se no banheiro e ao sair com o rosto inchado soluçou “meu grande amor”.
A gravidez mostrou-se tranqüila. No primeiro mês, Théo comprara uma lâmpada mágica e ela dizendo que ainda era cedo para brinquedos, mas segundo ele, este seria para ela, Théo realizaria todos os desejos da donzela mais bonita de toda Arábia. Sou brasileira.
O pai coruja preparava a mala para passar dois dias em Buenos Aires com a irmã da esposa, que ficara no seu lugar no estúdio, não na parte artística, mas na administrativa, e desta vez para Théo não embarcar sozinho ela o acompanharia representando sua mulher e parceira de trabalho, a irmã barriguda achou a idéia um barato e pela primeira vez em anos acompanhou o marido até o aeroporto para despedir-se.
-Veja lá se não morre de ciúmes meu bem, sua irmã é um perigo e magrinha assim.
- Tá certo Théo, Francis boa viagem, vê se me compra um Alfajor. Deu um beijo na testa dos dois e voltou para o táxi.
Durante os dois dias, ela tivera uma azia mortal e a diarista dizia que era normal, sinal que a criança vinha cabeluda. No banho ela sentiu um pouco de nojo ao lavar seu cabelo, pensando numa criança com longas madeixas imergindo por entre suas pernas. Ela às vezes tinha uns pensamentos assim sombrios, sobre diversas coisas. Sempre sonhava que ao atravessar a rua seria atropelada, ou que ao olhar pela janela seria decapitada, umas coisas bizarras que vinham no imaginário, quando acordada. Mas na noite do segundo dia, ela começou a preocupar-se com a irmã e Théo que não haviam chegado. Entre alguns pesadelos nos breves cochilos e telefonemas para caixas postais, ela foi até o quarto ainda vazio e no porta-retrato ao lado do berço havia uma foto de Théo e Francis, sua irmã, beijando a barriga com um sorriso desenhado de batom embaixo do umbigo estufado. Na foto, ela parecia distante, como sempre, num sorriso inteiro, com jeito de metade. Chorou. Porque se desaparecesse da foto, como gostaria no dado momento de não tê-la tirado, seu marido e sua irmã estariam se beijando. Seriam felizes os dois. Tão mais felizes que ela, porque naqueles olhos apertados havia uma alegria que ela nunca sentira e temia nunca sentir, os dois pareciam completos. E como eram bonitos, ela esquecera-se de como Théo era charmoso, de como seu corpo mesmo curvado e mesmo com aquela barriguinha avantajada dos homens com meia idade, Théo era lindo. E Francis, era um reflexo seu mais novo e sorridente, e ela sabia-se bonita.
Teriam os dois se apaixonado, estariam fazendo amor ao som de um tango antigo. Se for, tomara Deus que seja sem culpa, que se esqueçam de mim e da minha condição pouco sensual. Francis ficaria tão feliz, há anos procura alguém que acompanhe seu ritmo amoroso, ela é tão sentimental, dessas que precisa de flores e bombons, dessas super carinhosas, uma eterna romântica, minha pequena Francis que ventura seria encontrar um par como Théo, o encaixe perfeito, o encanto do mundo resumido em par. Que leves! Até eu suspiraria pelos dois. Que aproveitem a viagem então e que permaneçam quantos dias for necessário para amadurecer-lhes esse provável amor.
Voltou para cama e como só conseguia deitar-se de lado, assim ficou até os primeiros raios incomodarem a visão, amaldiçoando as palavras por ela ditas. Que abuso, os dois juntos, seria uma tamanha traição, deixando-a nesse estado, prestes a colocar uma criança no mundo. Uma mãe solteira, era isso que o gênio da lâmpada havia reservado para ela, seria essa a surpresa. Não, não seria possível suportar o vazio do apartamento, o vazio da licença maternidade, enquanto Francis, jovem e esbelta roubava literalmente seu lugar, daqui a pouco Théo a ensinaria a manusear a câmera e aí sim, terminaria emendando a licença com a aposentadoria por invalidez, se é que isso é possível.
Ligou a televisão. Desses jornais da manhã requentados, a notícia era a queda de um avião. A primeira coisa que fez foi ir ao banheiro vomitar. Não tinha vomitado nenhuma vez durante a gravidez, segundo Théo ela era uma fêmea forte, mas não, agora a tão almejada solidão a assombrava. Como seria viver sem tinta? Parecia que tudo que havia dentro queria sair, abraçou-se a barriga ninou-se. Não conseguiu pensar em nenhuma musica para cantar, então começou a inventar palavras numa melodia própria. Ouvia-se Esfera, Cor, Théo, meu mar, paz, minha cor, Francis, deus, de sozinho, entender, de novo. E ficou assim repetindo feito mantra.
O bebê chutou uma vez, duas, como quem diz, estou aqui. E depois vieram umas dores que ela entendeu por contração, dores muito fortes, a dor do mundo. Que só pode pegar uma duas mudas de roupa uma pra ela e uma pro filhote, enfiar dentro da bolsa e procurar o telefone do médico na agenda do celular chamando o primeiro táxi que passasse.
Vinha um de lá. Amarelo vivíssimo, a vida, uma esperança em cor mudada, e vinha rápido pronto, chegaria ao hospital num minuto. “Doutor Flávio sou eu N... Isso pelo visto não vai ser cesariana, vai nascer hoje, agora. Ah! Doutor, já estou a caminho sim, até logo”. Não. O motorista fez um sinal que estava cheio. “Não! Sou uma grávida! Tenho prioridade!” As lágrimas escorriam de desespero. Uma senhora parou para oferecer ajuda tentando acalmá-la. O mesmo táxi deu ré, nem bem a senhora foi abrir a porta de trás, esta se escancarou e lá do banco de trás com quatro olhos esbugalhados (re)encontrou o amor.