segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O verde palha

Então a caminhada entediou e eles se sentaram no canteiro.
A: Aqui é nosso epicentro, nosso ponto médio. Se saíssemos de nossas casas ao mesmo tempo chegaríamos aqui juntos.
B: Sou mais rápido, talvez fosse daqui a duas quadras. Pelo menos seu caminho é mais curto. Não me agradam muito esses seus passeios, quer dizer talvez agradem.

A: Hoje entrou um bicho no meu olho esquerdo.
B: Como assim bicho? O que você tava fazendo?
A: Falando com o Caio no telefone.

B: Será que amanhã você vai acordar com remela no olho?

A: Aí eu comecei a gritar, Caio me ajuda entrou um bicho no meu olho! Me salva!

B: Porque eu sempre acho que remelas são tipo os anticorpos do olho todos juntos e verdes. Por exemplo, as crianças criam muitos anticorpos e muitas remelas, e poucos problemas na vista, pelo menos que eu saiba.
A: Você conhece quantas crianças?
B: Porra muitas, né?
A: Quantas?
B: Sei lá... Meu sobrinho?
A: E a partir dele você chegou a essa conclusão?
B: Não. Isso é quase uma verdade universal. Você que conhece muitas crianças. Você que ama criancinhas. Não repara nas remelas delas?
A: Rimas riquíssimas. Reparo. Eu estudei na segunda série com um menino que chamava Raul, ele tinha muitas remelas presas nos cílios de cima, não sei como podia, esquisito sabe? E também ele não era tão criança assim.

Enquanto ela amarrava os cadarços do tênis vermelho, ele procurava o isqueiro. Tudo muito mecânico. Todos os gestos dentro de potes de vidro. Eram dois insetos em potes diferentes, um ao lado do outro, sobre a grama seca do canteiro. E nem paravam pra se olhar dentro dos vidros. Era medo. Aí falavam uma fala que não dizia nada, e aprofundavam sem querer, só preenchiam o tempo de coisas à toa. Ali o silêncio que mais dizia.

B: Então...

Com o cigarro aceso.

A: Então?

A: Sabe, você acha que Hiroshima estava calada antes de morrer?
B: Você não precisava desse sabe. Porque não perde esses vícios, sua oralidade é feia.
A: Acha?
B: Que Hiroshima é? A da bomba?
A: É!
B: Não sei, caiu que horas?
A: Acho que pela manhã.
B: Tipo sete da manhã ou onze? Há uma diferença de quietude aí, manhã é muito abrangente.
A: Sei lá, sete vai.
B: Calmo então. Devia estar espreguiçando.
A: É devia.
B: Por quê? Porque é importante?Devastou mesmo, acabou com tudo, como estava não me parece importante.
A: É importante.
B: Eles tinham evacuado um pouco a população sabia?
A: Hum...
B: Tá. É importante. Que você acha?
A: Concordo.
B: Só?
A: Faz diferença?
B: Não.

Um passarinho pousou no segundo andar de um prédio rosa clarinho em frente e bebeu a água que tinha janela. Depois saiu voando rápido. Ele não prestou atenção. Ela forçou bem pouco o olho esquerdo embaçado pra ver três segundos de pássaro.

B: Mas será que a bomba faz barulho na hora que ta caindo?
A: Não sei. Eu imagino um barulho fininho, sabe uns que irritam cachorro?
B: Me irritam um pouco.
A: Por isso.

Os dois riem alto e ecoa. Não teve tanta graça. Não teve graça nenhuma.

B: Caralho, que merda!

Um inseto se mexe tanto que o pote cai, e fica deitado na grama. O outro percebe e não olha. E o direito enxerga perfeitamente, não está embaçado, não custa nada. Seria só ver. Mas não. Periga desequilibrar também. Ela não quer.

A: Sabe...
B: Quê? Fala.
A: Não sei eu...
B: Eu também não, te juro, eu também não.
A: É mais, é mais que não saber.

Ela fala como se ensaiasse. Um olhar perdido, perdido dentro.
Ele senta. Sai do frasco.

B: Sabe que que é dona sabe, é que to puto. E não deveria, mas to puto contigo, pronto.

Passa um carro carregando uma musica altíssima que tudo tão quieto acordou.
A: Que bom que nós dois odiamos música eletrônica.

B: Ah cara, foda-se. Vou voltar pra casa.
A: Por quê?
B: Tá chato aqui.
A: Tá? Achei que você pudesse gostar.
B: Não gosto.
A: Posso voltar com você?
B: Mas você vai pra lá. Que foi ta querendo dar uma de saudável?
A: Não, to querendo dar uma.

Não sabe se foi o carro, a bomba, ou a frase. Ele deu de ombros e saiu. Sentada, ela pode ver as costas se afastando. Ainda perto.

A: Seu tênis ta desamarrado, sabe?
B: NÃO SEI. NÃO SEI MAIS DE PORRA NENHUMA.
A: Ei, escuta. Olha aqui.

Ele se vira, e esconde o rosto no joelho, talvez pra amarrar o tênis. E dali mesmo “Fala”.

A: Porra. Eu queria falar tudo de uma vez, mas aí você vem e eu não consigo. Mas eu sempre consegui. Essa verborragia não me serve de porra nenhuma. Fico puta sabe? Quando que isso me foi útil caralio? Nunca. Nunca!


B: Só?
É, de fato uma pena. Eu vou pra casa, depois a gente conversa, eu te ligo, sei lá. Tchau.

(A: Espera! Volta! Eii, vem cá. Faltou a parte que eu imploro, a parte que esmolo teu toque.Por favor! Vem. Vem você ganhou, você ganhou! Eu perdi, perco, não me importo. VEM!)

Ela grita o nome dele. Ele vira tão repleto de sentimentos que por serem muitos nem valem a descrição.

A: Me liga?

A: Me liga pra sempre?

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