Era tão noite que o relógio parecia à tardinha. Mesmo aquele nervoso dos insones já havia passado. As preocupações burras das horas não dormidas e da alvorada próxima já não lhe preenchiam as idéias. Levantou-se da cama inútil e foi ate a janela acender um cigarro. A fumaça por ela produzida não subia mais que ali o quarto andar. O universo é um Deus intocável, um que contempla. E ela cética, não se rendia a enigmas sutis. Inclusive, achava ruim admitir que se sentia realmente especial só por reconhecê-los. Por isso seguia prosaica uma vida de escritório, embora não trabalhasse mais num. Mas não era o desemprego que a perturbava aquela noite.
Era uma saudade de alguma coisa. Era o cheiro da avó quentinha. A nostalgia do enterro do passarinho no quintal. O balanço na árvore. O gosto de gelatina de framboesa. As cento e vinte e duas conchas ou brancas ou cor da pele do verão em Santos. Os primos. O bolo de fubá. A Dona Elza. As fitas de cetim rosa. A geladeira azul piscina; da sua, agora, ela tira um pedaço de gorgonzola e come cheio de lágrimas. Ser adulto fede.
Isso não é hora para telefonemas. Não que fosse educadíssima, conhecia por alto algumas normas básicas de convivência social. Sentou-se ao lado do telefone. Tirava-o do gancho, escutava o som continuo, tinha linha estava funcionando. De novo, ainda funciona. Mais uma vez, perfeito. Acendeu outro cigarro na janela, e agora soluçava ao universo. Tinham nomes, todas aquelas estrelas. Resolveu discar.
-Alô? Alô?
“Oi, sou eu, Rodrigo, mas não estou, ou não to podendo atender então, se quiser deixa um recado, se não quiser tchau, se quiser tchau também. Abraço”
Desligou. Respirou fundo, por duas ou três vezes. Secou as lágrimas. Enrolou os cabelos num coque preso por um lápis. Ligou novamente para escutar a gravação.
- Rodrigo, sou eu. Você não deve estar acordado. Você com certeza não esta acordado. Como esta a Mel? Os filhotes venderam todos? Encontrei sua mãe semana passada no mercado, ela esta bem, não? Ela disse se me viu? É que eu estava com pressa, não pude parar pra falar. Enfim, ela nunca gostou mesmo de mim. Ela me evita agora. A Brigite me chamou pra ir a Paris, ela trocou de apartamento, quer minha opinião com os móveis. Eu disse que estava com fotofobia pra Paris. Se der me liga, um beijo.
“Oi, sou eu, Rodrigo, mas não estou, ou não to podendo atender então, se quiser deixa um recado, se não quiser tchau, se quiser tchau também. Abraço”
- Rodrigo, eu não estava pronta. O médico tinha dito que era só embrião. Ele deu uma explicação convincente, eu não to maluca. Disse que o cérebro ainda não estava formado que não havia consciência. Desculpa. Eu não consigo. Errei, sou culpada. Já não durmo. Não sei mais escrever. Ta tão escuro. Não me mate, se há amor, não mate. Sou ruim, sou má, você não. Me ajuda. Não sei. Me desculpa.
“Oi, sou eu, Rodrigo, mas não estou, ou não to podendo atender então, se quiser deixa um recado, se não quiser tchau, se quiser tchau também. Abraço”
-Vá até a janela Rodrigo. Faça isso. Vê bem como as estrelas morrem. Corre até a janela pra ver. A gente nem sabe o nome delas. A gente nem liga quando já é dia. Me enoiteça Rodrigo. Me enoiteça de novo. E olhe pra baixo no teu céu se não, outra estrela se apaga. Te amo.
O interfone do primeiro andar toca, e é atendido quase que de imediato. “Oi seu Rodrigo, bom dia, desculpe incomodar o senhor assim cedo, mas é que a dona Cristina do décimo andar ta querendo sair com o carro da vaga e tem um outro carro aqui atrapalhando, aí eu fui lá ver era a Dona Clarisse que tava parada lá dentro dormindo um sono de pedra, ai eu to meio sem jeito né... ai to avisando o senhor... vai que o senhor que é esposo consegue avivar a dona.”
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