quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Imaginou que ela viria hoje. A velha refletida no espelho conflita com a imagem de Neusa. A saudade impregnada no olhar, o nó da garganta ramificado nas rugas, o pretume do medo nas olheiras. Quem a visse sob a meia luz do quarto pensaria antes no cômodo, se a percebesse presumiria uma estátua triste. O tempo parecia ter retirado a carga de importância da velha.
Na última sexta feira, Neusa recebera a visita homeopática de seu filho. Prevendo o girar da maçaneta, ela se antecipa ao olho mágico. Ao ver Leopoldo parece desinflar o peito, numa coisa que não se sabe alívio ou desgosto. O rapaz estranha o comportamento agitado da mãe. Não queria café, nem chá, nem leite, nem coca, não queria nada, só vê-la, como sempre. E, quem sabe, trocassem algumas palavras, ou talvez como ocorrido (e para surpresa do filho) a mãe falasse sem parar, sobre a visita de uma moça. “É muito bonita meu filho, deveria vir aqui mais vezes e quem sabe a encontraria. Tem os cabelos negros como a noite, a pele de tão macia, parece perolada, uma seda, meu filho, uma seda. Da primeira vez eu estranhei, já era tarde, quase onze e meia, eu sei que você acha que não devo abrir a porta pra estranhos, mas a bela não faria mal a uma mosca. Ela não disse nada, apenas sorriu e me abraçou. Claro que me desvencilhei daqueles bracinhos, que maluquice, mulher esquisita. Pois bem, fechei a porta e ela foi embora. No dia seguinte ela veio mais cedo, depois do jornal, pensei em não abrir, mas de lá ela gritou meu nome. Ordenei que entrasse e deixasse de alarde no corredor, julguei que fosse uma sobrinha do norte que a idade me fez esquecer, mas não. Na verdade não sei, a moça começou a falar do tempo antigo, me perdi na conversa e acabei por não saber de nada. E tem sido assim, ela chega quando quer, não toca em nada meu filho, não aceita um chá, mas conversamos que é uma beleza, depois vai-se embora, não sei seu nome e agora fico sem jeito de perguntar, não quer ficar por aqui filho? Pra conhecê-la? Já imagino os dois juntos, nossa quanta prosa! E é bonita viu? É linda.”
Leopoldo sentado no sofá ouvia a mãe discursar sobre a mulher. E tentava esconder o choro com as mãos, embora Dona Neusa mal olhasse para o rosto do filho, perdida em seu palco esquecera-se da platéia. Ele viera disposto a contar toda a verdade a ela, vinha cultivando coragem, ensaiando as falas para a revelação. Derreteu-se com os pedidos da mãe para que ficasse, que ficasse para ver a moça. Leopoldo desconfiava que a velha houvesse inventado toda aquela história, afinal era muito sozinha e orgulhosa, jamais o pediria para ficar apenas por ficar. Engoliu a revelação e todo seu porvir, mas rejeitou o pedido da matriarca, disse que trabalharia no dia seguinte e que ela dissesse para a tal moça que passasse no domingo. Despediu-se com um beijo nos cabelos brancos.
Já no elevador, lembrou da conta de luz do mês já atrasada que pagaria para a mãe. Voltando a casa, viu Neusa em frente ao espelho. “Está bonita Dona Neusa, já pode sair desse espelho”. A mãe pareceu não ouvi-lo. Leopoldo já não conteve o choro. O boleto foi pago, úmido.


- Já é meia noite, não é tarde para essa visita, filha?
- Deixe-me entrar Dona Neusa, eu sei que tem perdido o sono.
- Não quero que entre hoje, desculpe. Hoje vi meu filho. Ele quer encontrá-la domingo, venha no domingo.
- Não, só posso me encontrar com a senhora, sabe disso. – disse a moça encostada na porta fechada.
- Hoje, não, por favor. Só mais um tempo. – pediu a velha.

A porta foi aberta. A moça hoje estava radiante, a pele alva reluzia juventude. O perfume inundava o ambiente. Ao ver Neusa encolhida na cama, abriu um sorriso tal qual um calmante, sentou-se ao lado da velha e abraçou-a.

- Vamos, Dona Neusa, vamos dar um passeio. – disse a jovem em tom angelical.
- Mas... – Neusa não conseguia pensar em razão para opor-se ao pedido, a companhia da jovem lhe era tão mais agradável que a solidão da casa.
Quando iam saindo de mãos dadas, a velha pediu para deixar um bilhete ao filho caso não voltassem antes do domingo. Conquanto soubesse que o retorno seria demorado.

Leopoldo no domingo vê o reflexo da mãe deitada na cama e um bilhete na geladeira “Fui passear, fique bem meu filho”. Não encontrou a moça e acabou almoçando sozinho.

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