domingo, 24 de fevereiro de 2008

João, que voa, grande

Eu vi agora. Um pássaro rasgou o céu quente, pegando fogo. Fez verão corri pra ver. Suava uma chuva fraca, branca. Me molhou o rosto. Não vi se era preto, rosa ou prata. Não vi se era lua, mas era dia. Me confundiu a visão com os pingos. De repente empreteceu tudo, e eu só me lembro caído, já de pé. Eles disseram de um tudo, de comida pressão e calor. Mentirada. Aquilo ali era eu. Cheio de medo de altura. Que nessas coisas eu não acredito, mas medo de voar eu tenho sim senhor. A cidade tava quieta tava tudo quieto, que o povo é feito de açúcar. Só tinha eu ali, por isso é que ninguém viu. Mas já to até acostumado. O pessoal todo insisti na calunia, mas diz que é minha, eu não ligo pro que dizem. Tem que perdoar, mãe diz que tem que perdoar. Pensei que aquilo não podia ser só por aquilo, assim sem mais nem menos. Pensei então que devia de ser um sinal. Corri pra mãe. Ela julgou bobagem. Comi um jantar aperreado. Ninguém que ia de acreditar num guri daqueles. Fui até me sentar na calçada, tinha a camisa molhada de raiva, metia os pés no meio das pedras da rua e cantava uma moda antiga. Vi Juliana passar pra lá, nunca vi rapariga tão linda, nem ela nunca me viu.

Aí mãe disse que não era hora de menino estar fora. Foi só eu tomar um leite e entrar. Conseguia dormir nada. O tom já dormia faz tempo. E eu ali, rezava rezava rezava, feito mãe dizia, prestava não. Fui lá no quarto dela. Pedi arrego, abrigo. Mãe tava só.

- Mãe a senhora ta chorando é?

- To não menino, to não.

- Ta com problema nas vistas então?

- Deve de ser – ai ela passou as mãos nos olhos com força chegou a ficar vermelho.

- Então por isso que a senhora não viu mãe. Ta vendo só?

Ai ela não disse nada. Ai eu que ia pedir pra ficar nem disse nada. Só sentei na cama.

- Ta triste é? Eu nem vi que perguntei.

- É saudade, dá e passa.

- Por causa do pai, é?

Ai ela não disse nada, outra vez.

- ô mãe, o pai não volta?

- Bem que ele quer meu filho, mas volta não.

Ai eu bem deitei pertinho dela. Vi como é que o pai era burro, ele tinha todo dia isso aqui, a se eu tivesse todo dia isso aqui, só as vezes que não, porque as vezes ela era braba que nem só ela. Mas quando não a mãe era uma doçura. Adormeci.

No meio da noite levantei, rasteiro. Tava eu já no quarto, como é que era possível. Mas que dia mais esquisito pra num passar. Tom num tava lá não, ai fui lá ver a mãe. Tavam os dois lá. safado ciumento já tinha ido lá só de birra, nem tinha problema nenhum.

Acordei a mãe.

- Quié menino?

Ai o tom levanto, olhou e num entendeu nada, voltou a dormir de novo. Melhor.

- Mãe, espia só.

Desci as escadas correndo, eu era só o coração. Mãe, mãe, mãe, mãe... gritei um montão de vezes. Fui tendo um montão de mães nas janelas.
Começou uma chuva fraca, branca. Era a mãe chorando, chorando. Ai eu vi um pássaro, não vi se era preto, rosa ou prata, mas acho que era prata. Ou era a lua. Ai eu passei pela mãe, segurei sua mão, ai trouxe ela, agarrada no Tom, o danado veio junto. O que a gente viu, a gente viu. Foi bonito.
No outro dia de pé, ninguém nem falou nada, foi tudo igual. Eu com o bigode de leite, do Tom rindo, disse à mãe:

- ô mãe, eu cresci sabia, já to grande.

- Tu sempre foi grande João, sempre foi grande.

Nunca mais eu voei, num calhava mais.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Isso

Já a boca temerosa prefere calar
As palavras lânguidas internas
Palavras nocautes, jamais ditas
Jamais imaginadas
Palavras movimentadas, sem braço nem pé
Nem lidas, nem dor, nem vis.
Palavra âmago, invés da moral nossa.
Amor é plágio, pra te amo tão pouco
Quando o olhar proferiu bem antes, quanto antes
Força brava e branda
Coração e pulso
Caveira e pele
Com um intuito único, isso.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Atos

-Que tipo de homem você é? Einh? Me diz... Eu já conheço a sua estirpe. Você não fala, você traga. Acha o quê? Que eu sou idiota que não vejo as canalhices que você faz? Seu mau-caráter! Palhaço, mas saiba que agora o seu público acabou. Não vai existir, mas a mulher que ia te ver, a que pagava o ingresso mais caro. Não vai, acabou já chega dessa palhaçada. O pior cego é aquele que não vê? Pois eu vejo, só você mesmo, seu míope mental pra achar que eu não perceberia. Bem debaixo do meu nariz, e por quê? Um rabo de saia, uma noite?
Há quanto tempo se conhecem? Quem é a vagabunda? Eu? Você acha que eu vou ficar ligando pra essa gentinha que você se relaciona, no mínimo é uma piranha, uma vagabunda. Olha essas camisas! Sente esse cheiro, cheiro de perfume barato (no momento ela lambe o colarinho da camisa social branca). Canalha!
Não me olha assim! Não adianta nada você implorar, tantos anos, tantos. O que houve conosco? Eu não sou suficiente? Você não me deseja mais? Não sou mais doce, perdi o mel? Não quer mais meu corpo? (nesse momento ela tira a roupa, e vai andando para a cama de casal, nua, os seios caídos, barriga e pernas flácidas, vulva encoberta).
Odeio você que não me deseja! Te odeio! Nunca fui tão humilhada em toda minha vida. Toma esses óculos, toma esses remédios, toma essas blusas, toma esse batom, esse bilhete, toma esse perfume, toma suas evidências. Eu odeio tudo que tem seu vestígio. Seu rastro, seu veneno. Seu verme! Você fede, seu sexo fede, seu imundo. Eu tive que o aturar, fui eu e não ela, quem o teve sem querer, quem se deu, quem se doou. Quem cuidou de você. Mal agradecido. Toma essa porra de lanche. (nesse momento ela vai até a cozinha, pega a bandeja com suco de amora, pães de forma torrados, com manteiga já derretida, volta pro quarto e joga em cima da cama, nesta há amora e vidros, e sangue, e manteiga, e pão murcho, e lençóis).
Por quê? Saia já daqui! Sai da minha vida. Pouco importa se o apartamento é da sua mãe! Você me deve isso, um lar. Coisa que de você eu nunca tive.

(Nesse momento um homem magro abre a porta do quarto, e vê uma mulher nua, com olhos trêmulos, sangue nas pernas, mas ele não entende a cor daquele sangue, a boca seca dizendo coisas, que ele antes tentava entender do elevador e agora continua tentando.)

(Quando ela o vê diminui o tom de voz, veste o lençol, joga tudo pra fora da cama, abre espaço e estende os braços...)

(Então ele vê a mulher com os braços estendidos, e pensa que a ama. Mesmo feia, mesmo suja, mesmo outra, mesmo sua.)

(Ela o percebe)

(Ele senta ao seu lado, uns cacos o machucam, ele não tira. Tira o travesseiro ao lado. A mulher dorme no baixo. Ele toca seu ombro)

(Ela usa o travesseiro, pra ficar mais perto, apenas, e pede “deita”.)

(Ele dorme feito pedra, cansado; de tanto trabalho, e horas extras, pessoas extras.)

(Ela sonha.)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

diário

Quando eu paro pra pensar nos confetes que eu não vi no chão, penso que nem estive em Veneza, e nem vi seu um centímetro a menos, nada aconteceu. Não gosto de marchinhas. Não virei européia. Não sambei a Sapucaí. Nem encontrei meu pierrô.
A minha folia foi só, ver o início de mais um fervereiro, quer chuvoso, quer não. Mais um dos demais meses de não folia, não comoção.Mas não foi triste, isso não,nem coube tristeza. Um segundo mês que me deixou mais atenta , me fez respirar todo esse real. Encontrei gente, gente que valeu a pena encontrar, também reencontrei gente. Não fiz de tudo um pouco, mesmo. Mas fiz um pouco de nada, mais um pouco. Feliz não triste. Feliz, não triste. Por enquanto e não para sempre.


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Nave

Mente em branco. A sensação que tenho é de que posso ver marte da minha janela. E que ando na lua descalço. Meu diafragma comprime, é falta de ar. Passo as mãos leves pelo cabelo molhado, ninguém me vê. Num arrepio de frio, quente de expectativa, e comprimido, de uma inundação de sentimentos. Olheiras por ausência de sono, e falta de gravidade. Não tem ninguém aqui. É escuro, estou cego sem fechar os olhos. Me dá medo se lembro, mas se não, não. Quis gritar, mas a voz já é alta dentro. E tem também o barulho desse silêncio, murmúrio da verdade. Levemente perdido. Flutuando na iminência do fim. Sem capacete, sem luva. Pra me calar nu. Pra suspeitar a vida e valorizar a volta.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

O meu amor quando era pungente

O meu amor quando era pungente, tinha cheiro de vó
Ele era tão inquieto que da a sensação de que jamais me sentei
Dava taquicardia, e nó no estômago, depois falta de ar
Depois doença de surdo mudo, e depois dava que nem só ele

Era um amor tão doido de me confundir com o outro,
Não saber mais meus trejeitos minha graça, coisa de não achá-la noutros.
Era pão de forma quente com manteiga,
E o encontrar era como pisar em areia macia,
O encontro era um caminho na praia.

O meu amor fazia matemática,
e disso eu pouco entendia,
Mas me perdia nos problemas e o quis
Tanto com tantos eles.
Eu era uma outra ele era um outro
Verdadeiro.
Tão real como viagem de fim de ano, e cheque pré-datado.

Meu amor era colo de pai e ombro de irmão
O meu amor só de ver estremecia, e ria, sorria.
Meu amor sair do banho.
Meu coração maçã do amor, duro feito caramelo.
Meu amor quente.
Meu amor brasa.
Meu amor pé descalço.
Amor roupa nova.
Amor beijo na nuca.
Amor barriga cheia.
Amor de criança, às vezes adolescente.
O meu amor pungente.