sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Azul muito escuro

E de repente quero escrever sobre o medo que fica escondido na parte escura atrás da pele, dentro dos órgãos, diluído no sangue. Pra esquecer a angústia de pensar que lá dentro só mesmo, medo. Das coisas que choramos enquanto crianças, e depois engolimos. Se há dor em viver no incerto, é aquele que mora nas entranhas. Já que o alívio do grito não é o grito. Já que o alívio do pulo não é o pulo. É ainda outra forma de choro. Lágrima moderna de torneira seca. Pois a própria culpa da vida está no pleno, no máximo. A culpa é do azul. Quando no fundo, porque ele existe, sabemos que é preto, ou melhor, que também é preto. Viver requer menos misancene, pra ser mais úmido, mais aflorado. Com o todo encanto de poder tremer.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O verde palha

Então a caminhada entediou e eles se sentaram no canteiro.
A: Aqui é nosso epicentro, nosso ponto médio. Se saíssemos de nossas casas ao mesmo tempo chegaríamos aqui juntos.
B: Sou mais rápido, talvez fosse daqui a duas quadras. Pelo menos seu caminho é mais curto. Não me agradam muito esses seus passeios, quer dizer talvez agradem.

A: Hoje entrou um bicho no meu olho esquerdo.
B: Como assim bicho? O que você tava fazendo?
A: Falando com o Caio no telefone.

B: Será que amanhã você vai acordar com remela no olho?

A: Aí eu comecei a gritar, Caio me ajuda entrou um bicho no meu olho! Me salva!

B: Porque eu sempre acho que remelas são tipo os anticorpos do olho todos juntos e verdes. Por exemplo, as crianças criam muitos anticorpos e muitas remelas, e poucos problemas na vista, pelo menos que eu saiba.
A: Você conhece quantas crianças?
B: Porra muitas, né?
A: Quantas?
B: Sei lá... Meu sobrinho?
A: E a partir dele você chegou a essa conclusão?
B: Não. Isso é quase uma verdade universal. Você que conhece muitas crianças. Você que ama criancinhas. Não repara nas remelas delas?
A: Rimas riquíssimas. Reparo. Eu estudei na segunda série com um menino que chamava Raul, ele tinha muitas remelas presas nos cílios de cima, não sei como podia, esquisito sabe? E também ele não era tão criança assim.

Enquanto ela amarrava os cadarços do tênis vermelho, ele procurava o isqueiro. Tudo muito mecânico. Todos os gestos dentro de potes de vidro. Eram dois insetos em potes diferentes, um ao lado do outro, sobre a grama seca do canteiro. E nem paravam pra se olhar dentro dos vidros. Era medo. Aí falavam uma fala que não dizia nada, e aprofundavam sem querer, só preenchiam o tempo de coisas à toa. Ali o silêncio que mais dizia.

B: Então...

Com o cigarro aceso.

A: Então?

A: Sabe, você acha que Hiroshima estava calada antes de morrer?
B: Você não precisava desse sabe. Porque não perde esses vícios, sua oralidade é feia.
A: Acha?
B: Que Hiroshima é? A da bomba?
A: É!
B: Não sei, caiu que horas?
A: Acho que pela manhã.
B: Tipo sete da manhã ou onze? Há uma diferença de quietude aí, manhã é muito abrangente.
A: Sei lá, sete vai.
B: Calmo então. Devia estar espreguiçando.
A: É devia.
B: Por quê? Porque é importante?Devastou mesmo, acabou com tudo, como estava não me parece importante.
A: É importante.
B: Eles tinham evacuado um pouco a população sabia?
A: Hum...
B: Tá. É importante. Que você acha?
A: Concordo.
B: Só?
A: Faz diferença?
B: Não.

Um passarinho pousou no segundo andar de um prédio rosa clarinho em frente e bebeu a água que tinha janela. Depois saiu voando rápido. Ele não prestou atenção. Ela forçou bem pouco o olho esquerdo embaçado pra ver três segundos de pássaro.

B: Mas será que a bomba faz barulho na hora que ta caindo?
A: Não sei. Eu imagino um barulho fininho, sabe uns que irritam cachorro?
B: Me irritam um pouco.
A: Por isso.

Os dois riem alto e ecoa. Não teve tanta graça. Não teve graça nenhuma.

B: Caralho, que merda!

Um inseto se mexe tanto que o pote cai, e fica deitado na grama. O outro percebe e não olha. E o direito enxerga perfeitamente, não está embaçado, não custa nada. Seria só ver. Mas não. Periga desequilibrar também. Ela não quer.

A: Sabe...
B: Quê? Fala.
A: Não sei eu...
B: Eu também não, te juro, eu também não.
A: É mais, é mais que não saber.

Ela fala como se ensaiasse. Um olhar perdido, perdido dentro.
Ele senta. Sai do frasco.

B: Sabe que que é dona sabe, é que to puto. E não deveria, mas to puto contigo, pronto.

Passa um carro carregando uma musica altíssima que tudo tão quieto acordou.
A: Que bom que nós dois odiamos música eletrônica.

B: Ah cara, foda-se. Vou voltar pra casa.
A: Por quê?
B: Tá chato aqui.
A: Tá? Achei que você pudesse gostar.
B: Não gosto.
A: Posso voltar com você?
B: Mas você vai pra lá. Que foi ta querendo dar uma de saudável?
A: Não, to querendo dar uma.

Não sabe se foi o carro, a bomba, ou a frase. Ele deu de ombros e saiu. Sentada, ela pode ver as costas se afastando. Ainda perto.

A: Seu tênis ta desamarrado, sabe?
B: NÃO SEI. NÃO SEI MAIS DE PORRA NENHUMA.
A: Ei, escuta. Olha aqui.

Ele se vira, e esconde o rosto no joelho, talvez pra amarrar o tênis. E dali mesmo “Fala”.

A: Porra. Eu queria falar tudo de uma vez, mas aí você vem e eu não consigo. Mas eu sempre consegui. Essa verborragia não me serve de porra nenhuma. Fico puta sabe? Quando que isso me foi útil caralio? Nunca. Nunca!


B: Só?
É, de fato uma pena. Eu vou pra casa, depois a gente conversa, eu te ligo, sei lá. Tchau.

(A: Espera! Volta! Eii, vem cá. Faltou a parte que eu imploro, a parte que esmolo teu toque.Por favor! Vem. Vem você ganhou, você ganhou! Eu perdi, perco, não me importo. VEM!)

Ela grita o nome dele. Ele vira tão repleto de sentimentos que por serem muitos nem valem a descrição.

A: Me liga?

A: Me liga pra sempre?

domingo, 26 de outubro de 2008

Cor sem nome

Mais um ano na vida começa. Eu fecho os olhos apertados, e como quem acredita penso um mesmo pedido, amor. Um novo amor. Amor só meu. Um cheio de coragem. Um onde eu não caiba nas asas, porque pra mim chega de terra, quero voar junto. Um amor cheio de coisa. Que me divirta. Que me convide sem tempo. Que queira dançar. Que ria do meu riso farto. Que conte antes as pétalas das flores. Amor que arrepie e que molhe. Um que não se assuste com o tanto. Um que não tema a forma. Um que queira mais. Meu amor vai ter sede. Um que entenda o fim, e não queira. Um amor já moldado. A outra peça do Lego. A cereja. Um que tenha barba e tenha cabelos e tenha costas e tenha unhas. E me tenha nas mãos. Um que me leia. Não quero um amor cansado. Nem um amor espelho. Nem um metonímia. Meu amor não vai ficar decifrando, já nasceu sabendo qual sou. Um amor que compense toda a espera.

Só quero alguém. Pra colorir.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Arrepio

Como posso arruinar todos os planos do imaginário? Como? As vontades me são tão fugazes quanto numerosas. Se conseguisse haveria cautela. Seria só adicionar um pouco da preguiça característica ao turbilhão que tenho dentro. Não existe em mim a capacidade de suprimir desejos, já que estes como um todo, são só anseios muito íntimos. E nem são grandiosos. Ou talvez sejam, não faz diferença, eles raramente se movem. As coisas que quero são madrugada, só existem no escuro.
Tudo embriagado de bom senso manda conter-se. Tem muito não por aí. Por isso, às vezes, grito tudo que quero. Foda-se. E depois vem o que muitos chamam de arrependimento, não acho que seja o caso, para mim mais parece um desperdício de mistério. O que me estraga é a pressa, a avidez, a coceira por coisas que no fundo sei não-possiveis. Pois são obviamente possíveis aos mais afortunados. Sou pouco pra tanto, vivo a contradição de impulsos pré-meditados. Vivo a carência de charme.
Eu sei que o tempo faz murchar os jardins, querem podados ou não. O meu faz jus ao segundo. Floresço muito a mente. E não. Não beiro a porra-louquice, tampouco a loucura. Sã. Sã como um choro, sozinho e lúcido, lotado de melodia e suspiros. Talvez me falte algo. Talvez o tenha de sobra. A conclusão que chego mais parece um aviso. Escutem tudo o que tenho a dizer com a flor da pele. Na superfície profunda. Nem mais, nem menos.

domingo, 19 de outubro de 2008

De mostarda à cinza

Chove, domingo à tarde, os dois apartamentos são nublados. Ele deitado no sofá mostarda com uma samba canção preta de seda. Ela sentada no sofá vermelho, tem pés de tigre e um blusão preto, acende um cigarro e liga; ele estica a mão e atende.

A: Oi
B: Diga-me.
A: Como ta tudo aí?
B: Cinza e ai?
A: Também
B: Deixa-me adivinhar... Você ta com as pantufas?
A: e um blusão preto.
B: To com frio.
A: Se cobre com almofada.
B: To ocupado.
A: domingo?
B: Não... to fazendo um chá
A: Que viadinho!
B: Me ligou pra quê?
A: Nada
B: To ocupado, depois te ligo.
A: Você nunca liga depois
B: É mesmo. Desculpa.
A: Tá. Não quero desligar.
B: E se o apartamento pegar fogo? Você vai ser a culpada sabia?
A: Mas você não vai morrer. Você mora no primeiro andar é só pular pela janela.
B: Redundante. Mas ai eu teria que desligar, e você não quer, e eu sou solicito.
A: Muitíssimo. Você pode virar o duas caras.
B: Não gosto de quadrinhos. Você sabe.
A: Sei.

Ele estica a mão e acende um cigarro.
A: Você é multifuncional ta vendo só? Jamais queimaria.
B: Como sabe que eu acendi cigarro?
A: Vodu.
B: Magia negra.
A: Macumba.
B: Perdi!
A: Nossa que burro, dá zero pra ele!
B: Ontem terminou de ver o filme?
A: Sim. O Bergman consegue ser mais chato que domingo.
B: Só viste um?
A: Não, depois vi O Homem da máscara de ferro.
B: Puta clássico meu! Depois que desligamos ontem bebi pra caralio e vi Taxi.
A: Beber uísque no sábado solitário, bonito. E Scorsese é ótimo.
B: Não... É aquele da Gisele Bündchen.
A: Puta que pariu.
B: É.

B: Tenho que comprar um telefone sem fio.
A: To gastando rios de telefone com você.
B: Adoro gastar rios.
A: Mares
B: Lagoas.
A: Chuva.
B: Perai...
A: ô não vale! Perdeu!
B: Oceano.
A: Cachoeira
B: Merda! Você nunca admite a perda, né?
A: Com você não, sou melhor que você.
B: Tá, então vou lá ver meu chá.

Ela senta no chão, no carpete, sozinha, pois tem alergia a pelo de gato, e cachorros babam.
A: Quero ir aí.
B: Quer trepar?
A: Porra, porque você é sempre casual, sua casualidade me irrita.
B: Você é melhor que eu.
A: Eu sei disso, e que se foda.

Silêncio no frio de meio minuto.
B: Sabe o que é nojento?
A: Quê?
B: Uns bichos que ficam rastejando, tinha um no banheiro.
A: E eu?
B: Você o que?
A: Eu pareço uma minhoca pra você? Por você?
B: Cara não fala merda, que frase ridícula.
A: Eu acho que você sabe que sim.
B: Cara ta vendo só? Perdeu o lirismo da conversa, ficou chata.
A: Como assim perdeu o lirismo? Porra, perdeu o lirismo quando você falou trepar.
B: Mulherzinha você einh?
A: Mulherzinha teu cú.

A: Perai, tão me ligando no celular.

Enquanto isso, ele levanta, desliga o fogo. Prepara o chá numa xícara sépia. Abre o armário. Não tem torradas, nem biscoito maisena. Só Gim. Gim então. E volta à sala. A sala parece mais cheia. Mais mostarda que nunca. “Porque tem visita”. Puxou a mesa pra perto. Sentou. Abriu a garrafa. Encheu o copo. Cheirou o chá. Cobriu-se de almofadas. Por fim, telefone.

B: Pronto!
A: Pronto?
B: Parece mais cheio com você aqui. Quem era?
A: O que ta bebendo?
B: Chá e Gim quer?
A: São seus amigos Japoneses?
B: Não o apelido das minhas bolas, nossa suas piadas são péssimas!
A: Sim, porque as suas são boas.
B: Um metro e meio de pura ironia.
A: Deixa de ser babaca. To de saída.
B: Não quero que venha hoje, sério, desculpa, mas é que to muito em mim.
A: Ta muito em si? Okey, eu ia sair com a Thaty, vamos tomar um vinho aqui na esquina.
B: Sério? Vou também.
A: Você é afim da Thaty né?
B: Tá louca?
A: Não quero que você vá!
B: Meu, eu não to afim da Thaty!
A: Ta bom.
B: Já estão indo?
A: Não.
B: Me liga quando tiver saindo?
A: Eu já to contigo no telefone, vou é desligar.
B: Então vou trocar de roupa. Você vai de blusão?
A: Vou, e você não.
B: Não, acho péssimo sair de blusão.
A: Não vai! Vou me encontrar com o Caio, pronto. Caralio que saco!

(B: Piranha! Sua filha da puta, você não um pingo de vergonha na cara, eu devia ir lá atrapalhar sua foda. Sempre que tá frio você quer um corpo. Coitado do cara, não sabe nem o que ta comendo. Pelo preço de um vinho merda. Você é melhor que eu? Há é melhor que eu sim. Você nunca mais vai me ter, isso sim. Não quero mais perder meu tempo nessas ligações ridículas. Burra, Vadia, Gorda, Filha da puta, Escrota... E a lista não pára.)

(A: Odeio a porra do Caio, você sabe, queria ir prai. Quero você-domingo. Quero você-segunda. Eu quero até você-sexta-feira-ànoite-dispensando-programas-irrecusáveis. Eu quero você. E você só você-você. Burro! Eu poderia te amar.)

B: Calma! Era só você ter me dito antes né? E olha vai sem blusão, porque é brochante, deveras.
A: Pode deixar! Quando voltar te ligo!

A: Aloooou? Quando voltar te ligo, okey?

A: Ei morreu? Vou te ligar na volta!

B: Tá. Liga. Beijo.
A: Queijo.

A sala, de mostarda à cinza.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Bom inferno astral

Quando não sei o que dizer existe um problema seríssimo. Quando ao me ouvirem não souberem distinguir o que é futilidade expressa e seriedade sobre basicamente amor, é porque não sabem meu quanto. Se pudesse prolongaria minha escrita em agradecimentos, mas isso é chato e pouco rentável. Se pudesse escreveria sobre a beleza no olhar, sobre o calor de dentro, mas isso é batido. Se pudesse ser outra coisa talvez fosse morar na lua, talvez fosse atriz, dançarina, modelo e puta, talvez fosse melhor do que passar madrugadas dentro de páginas. Acarreto-me um valor tantas vezes desconhecido e outras tantas burro. Como uma vez me disseram, você não cabe em si. Achei tão bonito, guardei como um troféu em prateleiras gordas, depois achei triste, por estar guardado. Eu sou tão eu que tenho medo. E essa leitura é de fato chata, é mesquinha e dispensa os africanos sofredores, dispensa Bach, dispensa o asfalto esburacado, dispensa o grande para ser atenta a alguma coisa mais minha. A repetição do tema não é falta de criatividade, mas a inesgotabilidade deste. Pode ser pedante, o é, mas viver só dentro de mim aborrece. Invejo a ficção, invejo tanto a boa ficção... Amanhã comprarei um repelente para matar mosquitos, e nem tive a chance de dizer que um chamava-se John e o outro Brian e que tinham um amor implícito homossexual americano do norte. Um conto chato e sem clímax. “Não gozo há dias” parece real. Suscita a dúvida entre o verossímil e a verdade. Pronto um bolo de coisas descartáveis. Um mosquito me mordeu na testa. Juro!

domingo, 12 de outubro de 2008

Dois pra lá, dois pra cá

Como se todos os segredos pudessem ser revelados no sorriso cheio de dentes. Como se a suposta proibição instigasse cada vez mais o libido pelo novo. Como se o rubor na face alva não precisasse ser despistado com olhares baixos. Diante da identificação nela, definitivamente mutua, palpitasse a certeza de uma coisa que sabe lá se é perene, que está aquém do amor e além do amante. Que já era hora de dizer nas perigosas entrelinhas, quase nunca desacompanhadas de ouvintes, que existe um querer. Além de convites imarcáveis, elogios amigáveis e não elogios há dança. Uma dança acanhada, que poderia flutuar, mas tem pés no chão, e mãos atentas. Depois o encontro de olhares não brilha, só olha. Como não pode ser romance, sorriem os dois, desgrudam-se, distintos, que dentro em breve, improvisam nos corpos a vontade retornante. À vontade, poderiam estar descalços. Um pé no outro seria gostoso, como o toque do pêlo, como o encontro dos colos; como era dia sem sol. Certa é a inconstância dos dois, certa e leve, certa e graciosa, certa, cheia, preguiça. Será possível a verdade dos fatos se não conheço a tua alma? Posso dispensar o rebuscamento da nova gramática? Posso avançar no flerte? Quero avançar no flerte? Então fiquemos assim. Indefinidos. Eu a espreita de mim e tu como quiseres e bem entenderes. Pois por enquanto não encontrei o nó na garganta, nem tive vontade de expeli-lo imediatamente como uma louca varrida com toc pela verdade. Reservo a verdade para sua dona, talvez capaz de entender-se e a sua confusão/confissão de linhas. E ao desvalor destas.